28 março 2006

Metamorfoses


A família está reunida à mesa. Os rapazes comem procurando distrair a fome que parece nunca terem. A mãe vai comendo silenciosamente enquanto não larga de vista os pratos dos filhos. Demoradamente cheios.
E eu, observo. Procuro ouvir as notícias e ao mesmo tempo imaginá-los do lado de cá da maioridade. Claro, alguns processos não largam o meu pensamento. Mesmo quando lhes leio no quarto o Gigante Egoísta, penso que tenho seis volumes para ler esta noite.
Um beijo na minha mulher. Na face. Perdi algo que não sei se serei capaz de reencontrar. Ouço-a desligar a luz do pequeno (e moderno) candeeiro que derrama luz pelas paredes do quarto. Ligo o abat-jour e abro o processo. Em letras maiores do que as restantes está escrito PRESO. Antunes Faria, o «Pigarro», é acusado de violação.
Começo a ler o auto de notícia, a ver algumas fotografias da linha de comboio e subitamente a minha cabeça é puxada contra as folhas do maço ficando a minha face esquerda esmagada. Tento levantar a cara mas não consigo. Sinto que estou a afundar-me. A minha cabeça praticamente desapareceu no pântano do processo. Meu Deus, como dói! Sufoco! Não consigo emitir um único som e é mudo que assisto ao meu corpo submergir no processo.
Abro os olhos. Estou num café. Música alta!
Então Pigarro, não bebes nem dizes nada!
Já juiz não sou.
Não impliques meu. Não vês que estou a ver ali aquela matadora.
Pigarro olha para a mulata de dezoito anos que se vai abanando junto ao balcão. Parece estar sozinha. Ah, não. Aí está o marmanjo. Que totó! Não tens pedalada para essa poderosa!
Eh, pá, tu estás mesmo embeiçado. Vai falar com ela.
Nã, mais umas cervejas e depois eu mostro-lhe aqui um amigo, diz Pigarro enquanto leva a garrafa aos lábios e estala os dedos polegar e médio da mão direita.
A noite foi correndo tal como o álcool. A mulata sai juntamente com o namorado. Vão a pé. Saem.
Pigarro e os amigos seguem-nos. O totó já olhou duas vezes para trás. Está desconfiado o gajo!
Vão entrar num carro ao pé da estação. Não têm tempo. Enquanto dois de nós o agarram e lhe dão uns murros bem aplicados na cara, eu fico com a mulata. Ela começa a gritar (AH, deixem-no! Que querem!) e sou obrigado a dar-lhe duas bofetadas que a deixam grogue. Atiro-a para cima do capô e arranco-lhe as calças de ganga. Tiro-lhe as cuecas. Que beleza! Enquanto lhe apalpo as mamas, tiro as calças. Ela começa a mexer-se mais. Agarrem-na! Os meus amigos tapam-lhe a boca e agarram-lhe os braços. Estou quase a
Abro os olhos e vejo a minha mulher.
Não me digas que ficaste toda a noite a dormir aqui?!
Ah, não, quer dizer, não sei. Não consigo lembrar-me… .
Enquanto tomo banho penso o quanto tudo parecia tão real. Ainda bem que não estive a estudar um processo de terrorismo rio-me desta piada enquanto esfrego os sovacos.
Na sala de audiências já estou sentado com as minhas colegas ao meu lado. Os advogados mexem em papéis e ainda há burburinho na sala. Os irritantes sshh do funcionário acabam por nos silenciar. Com a folha aberta na primeira página da acusação preparo-me para identificar o arguido mas um barulho distrai-me. Eu conheço este som mas de onde vem? Olho para o lado mas as juízas fitam-me interrogativas. Bem, não há de ser nada. Vamos a isto. Olho para o arguido e vejo-o a estalar os dedos da mão direita.
Obrigado a todos os comentários e só a vossa boa vontade pode descobrir tanto em tão pouco. Vou escrevendo sempre que vá encontrando forças para tal e desculpem pelo meu silêncio.

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