23 outubro 2006

Viagem-III


Entro confiante na repartição projectando o fim da minha viagem.
Um balcão com divisórias de vidro, iluminadas por um foco colocado no tecto, acolhe funcionários com apêndices auriculares.
Coloco-me numa das filas que indica Renovação de Documentação. Apenas uma pessoa me antecede. Rapidamente a encaminham para outro departamento.
Boa tarde. Recebi a vossa carta para renovar os papéis.
Com certeza, senhor. Um momento.
A funcionária tecla num computador e fixa o olhar ao meu lado. Está a ouvir instruções no auricular. Abana levemente a cabeça.
Por favor, siga-me.
Conduz-me por um corredor claro e estreito até uma porta.
Entre. Se quiser sente-se nessa cadeira.
Aceito a sugestão.
Escuro. Tenho dificuldade em adaptar-me à ausência de luz sentindo-me praticamente cego. Quando começo a pressentir a presença de um vulto numa esquina da sala, acende-se uma luz. Pequena mas forte que me obriga a fechar os olhos. Com a mão à frente da cara procuro descobrir quem está na sala. Avança na minha direcção. Pára e estende-me a mão.
Viva. Espero que te sintas confortável.
Cumprimento-o e, apesar da imediata familiaridade, pergunto.
Quem és?
Puxa de uma cadeira e senta-se ao meu lado.
Tu. Pelo menos em parte.
Olha, está bem, isto é muito bonito mas encontrei crianças que esperavam mas não estavam à espera, comboios que surgem de nevoeiros misteriosos, a mulher que amei e já não existe e agora, por causa de uns simples papéis, dou de caras com um tipo que diz que sou eu, francamente, vou-me embora para a minha tenda e de lá não volto a sair.
O suposto outro eu sorri.
Tens toda a razão, moicano. Eu explico. Sou o teu autor. Fui eu que te criei e que te chamei até aqui.
Foste tu que…, e me chamaste… . Estendo os braços ao longo do tronco. Não percebo. Tu és o meu Criador?
Sim, mas sem C maiúsculo. Sou apenas alguém que resolveu criar um blogue e te deu uma identidade.
Reflicto uns segundos.
Espera aí! Se és o meu criador, como é que estou aqui a falar contigo, ah? Eu digo o que me apetece e tu não estás a criar-me.
O outro eu aponta para o fundo da sala.
Vês, ali, naquele computador, está escrito tudo o que aqui se está a passar. Acabei precisamente quando te sentaste.
Quer dizer que escreves às escuras?
O autor ri-se.
Não, a luz sempre esteve lá só que não tinha chegado a altura de a veres. Escuta, diz ele pondo a mão no meu braço. Chamei-te para dizer que a tua viagem chegou ao fim. O moicano vai (hesita), digamos, vai sair de cena. Esta é a tua última viagem caro moicano.
Porquê?
Ora, tudo o que começa acaba, o autor está cansado, acabou o prazo de validade, perdeu-se o rumo, sei lá, tudo isto e nada daquilo. Sinto que te tenho de dar felicidade. Tenho-te causado muito sofrimento, não consigo evitar escrever sobre a morte, sobre tristeza e isso deixa-me amargurado. Mereces melhor, mereces ser feliz, decidires o trilho que queres seguir.
Tu escreveste isto?
O autor abana a cabeça enquanto passa a mão pelo cabelo ralo.
Sim, sim. Tudo está escrito. A tua história está escrita até ao final.
Se bem percebo, vou morrer.
Lá está, vês, outra vez a morte. Estás a ficar obcecado, daqui a pouco tu és como eu e não posso permitir que isso aconteça.
Levanta-se. Puxa-me da cadeira, agarra-me os braços e fita-me nos olhos.
O teu autor é um grão de areia insignificante ao pé daquilo que tu representas para mim. Mereces viver, ouviste, viver e não morrer.
Larga-me.
Bem, o caminho com árvores e uma laje ao fundo está lá mas é tudo meramente simbólico.
Percebo. Sim, percebo. E odeio-te. Bastava escreveres que nada mais ias publicar e o assunto estava arrumado. Mas até te perdoava se não fosse Madalena. Porque a encostaste de novo ao meu peito?
O autor volta-se e carrega num interruptor. As paredes desaparecem e dão lugar a uma rua da cidade. Está frio e choveu há pouco.
Chegou a hora moicano. Farás sempre parte da minha vida. Foi uma honra escrever-te.
Estende a mão. Despedimo-nos sem palavras. Ele desaparece numa esquina. Fico petrificado na estrada enquanto todos me ignoram. Já moicano não sou.
Madalena enfia os seus braços no meu braço esquerdo. Começamos a caminhar. Diz-me que a vida continua e quando dou conta rimos juntos.

«rimos juntos». Está terminado. A luz apaga-se suavemente nos meus olhos.


Sim. Desta vez é final. O primeiro moicano acaba aqui. Poderá haver outros pioneiros mas este deixava-me muito cansado. Desde que abandonei a exposição de ideias jurídicas e me dediquei a escrever estes pedaços de histórias, sentia que cada uma podia ser a última. E agora, que mudei de tribunal, o tempo praticamente é nulo. Em termos de tempo, há prioridades e o trabalho (que não o merece, de forma alguma, neste país em que a maioria dos processos clama não por justiça mas por simples vitória) agora sobrepõe-se.
Queria escrever para os contos jurídicos mas não consegui. E mesmo nesta viagem III fico com a sensação de Matrix em que o último é o mais complexo e o menos conseguido.
Obrigado Cleópatra, a quem sempre tentei agradar em especial por que sabia que gostava do que eu escrevia. E a todos os outros (Redonda, Morgana, Dizpositivo – desinteressada amabilidade em informar que eu tinha postado -, todos os outros, obrigado e até à próxima).

21 Comments:

Blogger redonda said...

Mas não pode ser...vou ficar a aguardar que aqui ou em outro lado voltes a escrever, quando tiveres mais tempo (e gostei do final).
Um beijinho

outubro 24, 2006 10:28 da manhã  
Blogger C said...

Vou ser lamechas e citar gabriel garcia marquez, "não chores porque acabou, sorri porque aconteceu"

outubro 24, 2006 12:01 da tarde  
Blogger J said...

Até sempre.

Um grande bem haja, Sr. Moicano.

outubro 24, 2006 8:48 da tarde  
Blogger Cleopatra said...

Como pode fazer-me chorar mais uma vez?
Que lembranças me traz não sei de onde?
Onde me toca tão fundo que magoa a alma?
Como pode dizer que vai embora agora que mais ainda desejo que continue a escrever?
Não faça isso.
É uma grande maldade.
Um grande egoísmo.
E eu nem o conheço.
Ou julgo que não conheço???

outubro 26, 2006 6:59 da tarde  
Blogger Cleopatra said...

NUnca tive a honra de ter um comentário seu no meu Blog.

outubro 26, 2006 7:01 da tarde  
Blogger xavier ieri said...

Adeus Moicano, vALTER rEGO Diplomata, heterónimo esquizofrénico do tipo pessoano.
(é, pelo menos, a minha leitura, e se me não engano...)
É obra.
Foi obra digna e muito bem escrita.
Obrigado pela partilha.
Um abraço e até sempre.
xavier

outubro 27, 2006 12:51 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Meu amigo

Usando uma linguagem biblica, não aprisione o seu talento, pois será o mesmo que desperdiçá-lo. Confesso que não tive o privilégio de conhecer o seu blog mais cedo, com muita pena minha, dado que só ontem através do blog da meritíssima rainha Cleópatra cheguei ao conhecimento do seu blog, e fiquei maravilhado com as histórias que escreveu quer as que dizem respeito ao quotidiano juridico, quer as outras, contudo ambas muito bem escritas em termos literários.Quem me dera a mim como profissional do universo juridico que as sentenças e acórdãos fossem tão bem escritas como as suas histórias.

Peço desculpa por me ter alongado nos considerandos, pois o que eu queria mesmo dizer-lhe era que continuasse a escrever aqui.

Um abraço e espero até breve.

Lobo das Estepes

outubro 27, 2006 5:39 da tarde  
Blogger DarkMorgana said...

Fiquei espantada quando li a sua decisão, quase indignada, mas reconheço que, por puro egoísmo.

É estranho quando se fica (já) com saudades de alguém que nem se conhece...pelo menos fisicamente...

E saudades do que ainda esperava vir a ler de si...

E com uma sensação de perda...como se perdesse um livro do qual goste muito de ler um capítulo de vez em quando...e porque sei que quando leio o novo capítulo, compensou esperar mais uma vez...

Volte, Moicano, noutro personagem,se preferir, com outro blog, como quiser, mas volte.

Não deixe de escrever, ainda que tenha que ser só uma vez por mês, ao ritmo da sua disponibilidade.
Nós não nos importamos de esperar, porque compensa sempre lê-lo.

Por favor não apague este blog.
Vou manter o link do seu blog no meu, para que outras pessoas que lá cliquem por curiosidade, tenham oportunidade de ler os seus textos também.

Até breve

outubro 27, 2006 9:13 da tarde  
Blogger Apache said...

Bom, aqui fica mais uma voz de "protesto" pelo fim do blog... Ainda assim, mais do que saudade, fica a ansiedade... Aqui ou noutro lugar... até já!

outubro 30, 2006 1:36 da manhã  
Blogger C said...

Rogo ao moicano que elimine o comentario do xavier ieri e a sua psicose em me confundir com o moicano.

novembro 03, 2006 5:39 da tarde  
Blogger Cleopatra said...

Venho "avisá-lo" de uma coisa:

Está notificado, convocado, convidado, intimado a escrever um conto para o : "A contos com a Justiça II".

Tenho dito.

Ah!! E se não escrever, eu, vou escolher um dos seus contos para publicar no dito livro.

Que me diz?!

novembro 04, 2006 9:58 da tarde  
Blogger C said...

Põe-te a pau com os direitos de autor!!!

novembro 07, 2006 7:16 da tarde  
Blogger Menina Marota said...

Não sei como aqui vim parar, mas isso agora também não importa...

E fiquei um pouco desiludida, como quem começa um bom filme e de repente a fita parte-se...

Foi essa a sensação que tive, quando li as despedidas...

É sina minha, quando descubro algo de bom, ele está de partida.

Fico-me pela leitura (excelente, pelo que já li) dos Arquivos..

Espero que volte...;)

Um abraço

novembro 09, 2006 1:08 da manhã  
Blogger xavier ieri said...

Sintomático ser o diplomata a responder
Houve quem dissesse em tempos de desaparecimento anterior que o apache era o "último dos moicanos".
Veio a revelar-se não ser, tal como eu previra.
Embora não interesse para nada, mas continuo a pensar(e basta ler uns e outros) que moicano(o primeiro), diplomata e vALTER rEGO (como o nome indica e as primeiras letras iludem) são uma e a mesma pessoa.
Para quem tiver tempo e paciência, quer para voltar atrás neste blog e nbo diplomata e efectuar uma busca a sério, pode encontrar o moicano reconhecendo-o pela sua fotografia... de diplomata!

novembro 09, 2006 8:20 da tarde  
Blogger moicano said...

Erro puro, excêntrico. Não sou diplomata e muito menos Valter Rego. A minha única intervenção em blogues foi este pobre moicano. Espero que baste a minha palavra já em excesso.

novembro 10, 2006 11:49 da manhã  
Blogger C said...

Jesus Christ!!!!!
Eu tenho foto; logo, todos os blogs do mundo são da minha autoria. Bravo, Descartes.
Contudo Ieri, agradeço o facto de ser leitor do meu blog. Mas teimosamente proclamar que Diplomata e Moicano sao a mesma pessoa começa a ser cansativo e, ab initio, errado. Ah, e Valter Rego do Semental (blog extinto) não é nem o Diplomata nem o Moicano: como sei? Simples, conheço quer o Moicano quer o Valter. E não vale a pena tentar provar mais que o Sol gira à volta da Terra, for God's sake.

novembro 10, 2006 7:48 da tarde  
Blogger xavier ieri said...

Um abraço, caro amigo.
É o que importa.
Afinal o Pessoa também foi tantas pessoas...
E depois, quantos de nós podemos jurar a pés juntos que em algum momento, em algum lugar, não somos voluntariamente um outro...?
Mal nenhum por aí advém.
Quanto aos nossos três (eu disse três, ok?) amigos, espero apenas que não dêm descanso à pena.
E nós que saibamos, pois então!

novembro 16, 2006 12:18 da tarde  
Blogger José Leite said...

Moicano? é algum jogador de futebol?

dezembro 03, 2006 4:12 da tarde  
Blogger Cleopatra said...

Ainda continuo à espera.

fevereiro 04, 2007 12:46 da manhã  
Blogger redonda said...

Estou com saudades do teu sentido de humor...
Que tal recomeçares a escrever, aqui ou noutro sítio?

setembro 19, 2007 1:04 da manhã  
Blogger Gláuber said...

MARAVILHOSO, FANTÁSTICO, ADOREI TUAS HISTÓRIAS!!!

janeiro 02, 2009 8:15 da tarde  

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