21 abril 2006

O menino de sua mãe.


Judite está cansada. Senta-se no sofá e encolhe as pernas metendo-as quase totalmente debaixo das nádegas. Estica o braço e agarra na caneca com leite quente que leva com cuidado aos lábios cada vez mais finos. Ao colo tem um caderno com os apontamentos do último julgamento. As madeixas cinzentas do cabelo ainda húmido do banho recente pendem-lhe para a frente dos olhos. Pousa a caneca numa pequena mesa e esquecendo-se que as letras que tem à sua frente saltam umas por cima das outras sem óculos resolve atirar a cabeça para trás fitando o tecto.
Por que me esqueço sempre dos óculos na carteira pensa em voz alta. Olhos fechados.
Uma mão afaga-lhe o rosto.
Olhos fechados. Devo estar a sonhar.
Não, não estás.
Judite ergue a cabeça e lentamente olha para o lado. Estranhamente não tem medo.
Olá. Ainda te lembras de mim?
João!
Sim. Continuas absolutamente linda diz enquanto sorri.
Judite endireita-se.
Não tenhas medo. Tudo é perfeito.
Já…já morri?
João sorri. Levanta-se e caminha pela sala.
Ninguém morre, amor, diz, abrindo os braços. Estou mais vivo que nunca!
Pega num jarrão. Olha-o de perto e volta a pousá-lo.
Não, não morreste. Coloca-se de joelhos e agarra nas mãos de Judite que tem lágrimas nos olhos.
Mas debaixo deste cabelo que sempre me enfeitiçou, há uma veia doente. Não te assustes. Não vais sentir nada.
Judite fita-o pálida. A morte nunca a assustou mas agora...
Não quero morrer João, por favor, ainda não!
Porquê? Estarei sempre contigo.
Judite lembra-se. Lembra-se que não tem ninguém no mundo de quem se despedir. Tem quarenta e quatro anos e não tem pais, irmãos, sobrinhos. Filhos. Não tem filhos.
Quero ter um filho João, quero deixar alguém neste mundo que se lembre de mim, Não quero só que um morto me queira junto dele! Agarra o ex-marido. João, percebes, eu ainda não tive um filho e tu sabes o importante que isso é para mim. Meu Deus, será pedir muito que não seja agora?
Larga o espírito.
João está imóvel. Lentamente dirige-se para uma das janelas. Os automóveis seguem em fila. Não consegue evitar um fugaz momento de raiva ao pensar no camião que o esmagou. Fecha os olhos. Cerra os punhos. Torna-se praticamente transparente tal a força a que a sua pele é sujeita. A cara está alagada de suor. De repente abre os olhos e volta a ter a serenidade que ostentava quando entrou.
Regressa para junto de Judite que chora convulsivamente. Abraça-a. Beija-lhe as faces e seca-lhe as lágrimas com os seus lábios que por fim encontram os da sua vida. Desaperta os botões do pijama e lentamente deita-a na carpete. Judite a princípio não reage mas acaba por se entregar. Um momento. Um corpo.
Ainda não, amor. Ainda não.
Judite caminha agora pelo parque. Uma mão segura um livro. A outra afaga o menino que tem dentro de si.
Obrigado, mais uma vez. Ao PRF, vou pensar mas só quem não me conhece pode querer que participe em algo com qualidade. Mas vou pensar. E um dia talvez não contenha a desilusão que sinto por este País em que parece que os culpados são sempre os mais fracos.

5 Comments:

Blogger C said...

muito bem. muito bem mesmo.




pleeeeeease, um link!tá bom assim?

abril 26, 2006 9:08 da manhã  
Blogger Cleopatra said...

Bolas Moicano!

è o primeiro comentário.
Os outros guardo-os no silêncio.
São sérios de mais!

maio 16, 2006 11:41 da tarde  
Blogger redonda said...

Como é que não ia com ele?

maio 25, 2006 3:17 da tarde  
Blogger moicano said...

Se fosse a estória acabava mais depressa.«olha vim buscar-te. Ah, está bem».

maio 25, 2006 6:45 da tarde  
Blogger redonda said...

adorei a resposta...

maio 25, 2006 6:50 da tarde  

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