04 fevereiro 2006

G-3


O furriel urina no capim. Antes de cada missão tem de aliviar o saco. Os homens estão sentados numa viatura. Uns escrevem outros lêem. Dois fumam e outros não existem.
Vamos!
Não se esquece de nada meu Furriel?
Nunes olha para o cabo Martins.
Que queres,pá? Por acaso é Natal?
Parabéns, meu furriel! Ou já se esqueceu que faz anos pergunta Martins enquanto tira uma grade de cerveja da viatura.
Não há frango mas há feijões para todos.
O alferes dirige-se para os homens e bebe uns goles de cerveja. Estou velho, pessoal. Vinte e cinco anos. Daqui a pouco sou avô.
Para isso precisa de ser pai primeiro diz um soldado provocando a risada geral.
O Alferes acaba a cerveja e, atirando a garrafa fora, diz:
Está a andar!
O grupo dirige-se para uma sanzala onde tiveram informações que podem escondidos uns terroristas da UPA.
Chegam. Uma ligeira neblina paira no ar. Os PV2 sobrevoam o local. Nas palhotas só mora o silêncio. Os soldados, de G-3 em punho, vasculham-nas uma a uma. O cabo Martins está parado numa delas olhando para o seu interior. Vários pares de olhos fitam-no. Com a mão direita em direcção a esses mesmos olhos e com a arma no braço esquerdo começa a chamá-los a si. Os outros companheiros estão agora ao seu lado, também mudos.
As crianças começam a sair. São mais de uma dezena que saem da palhota. Negros. Troncos nus e lábios grossos. Dois deles trazem bebés ao colo.
Que é isto meu alferes?
Não sei. Mas não gosto.
As crianças ficam paradas num grupo desordenado à espera que alguém lhes diga o que fazer.
O Alferes manda comunicar com a base para mandarem dois helicópteros.
Vamos levá-las.
O pessoal acha bem. Alguns soldados oferecem chocolate ou pegam-lhes às cavalitas.
Queimem tudo.
À medida que voltam pelo trilho o cheiro a queimado começa a desaparecer. Estão quase no ponto de encontro.
Uulalá, UPA, UPA, mata branco.
As balas começam a atravessar os corpos dos soldados. A maioria consegue subir para os helicópteros.
Subam, Subam! Não deixem crianças para trás.
O Alferes ainda não subiu. Nem subirá. Pelo menos para o esqueleto voador. Uma bala certeira perfura-lhe o coração. Enquanto tomba no solo, os homens disparam dentro do helicóptero às cegas para o capim. Os terroristas começam a não recear as balas do branco já fora do alcance e rodeiam o corpo do alferes.
Martins conduz a viatura. No rádio noticia-se a morte de um inspector da Polícia Judiciária. Cabelos brancos e curtos. Óculos na face e um bigode que teima em não cortar. Estaciona o carro e entra no cemitério. No braço esquerdo leva um objecto enrolado num lençol branco. Ao pé da campa, quase anónima, pára.
Parabéns, meu Alferes. Está a ficar velho. Vinte e cinco anos!Desdobra o lençol e olhando para os lados só vê uma velha que lava uma laje. Retira a G-3 e crava-a no solo ao lado da campa. Coladas na G-3 fotografias de adultos de cor negra. Martins fita imóvel o rosto do Alferes e depois vira costas.
Não sei por que me apeteceu escrever isto mas depois de ver alguns sítios e blogues sobre a guerra colonial, resolvi avançar. A fotografia é retirada de um deles cujo nome não retive.

2 Comments:

Blogger Cleopatra said...

Já viu a minha postagem das cartas de guerra da Cleopatra???

Lembra-me esta.

Uma boa noite!!!!

fevereiro 18, 2006 10:20 da tarde  
Blogger DarkMorgana said...

Porque é que não escreve um livro?
De memórias suas ou de memórias de outras pessoas, que a julgar por este exemplo, ficarão muito bem retratadas.

fevereiro 27, 2006 7:49 da tarde  

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