08 janeiro 2006

ponta solta



Mas para que aceitei meter-me nisto? Nunca gostei de jantares de despedida. Nem os dos outros quanto mais do meu.
Simão já sabes que há regras e que não te custa muito. É só por uma noite e depois tens o tempo todo á tua frente. Vá, despacha-te.
Que querida, sempre com razão. Bolas, não há maneira de conseguir fazer este nó.
Dá cá pai. Já sabes que sou eu que te faço o nó da gravata.
Simão dá um beijo na filha enquanto diz «o que seria de mim sem ti».
É Simão que conduz até ao restaurante. Fica numa quinta do lado de lá da cidade. Quando chegam, Simão vê colegas a acenar-lhe. Um deles começa a correr à frente do carro apontando para um lugar fingindo ser um arrumador. Simão ri e ao sair finge dar uma moeda ao colega juiz ainda no activo.
Bem vindo pá. Isto hoje vai ser de arromba. Olá, e parabéns por ter conseguido convencer este bicho de toca a sair esta noite para a festa em honra dele. Simão troca um olhar com a mulher que mente dizendo que o marido estava ansioso por vir.
No jantar, Simão ficou sentado numa mesa comprida e rectangular tendo a mulher e a filha do seu lado. Houve cantoria de uma tuna de uma faculdade, de um coro e de um secretário que arranhou umas notas numa viola. Mas, Coimbra, faz sempre as pessoas cantar.
Discursos. «Um grande homem e um grande juiz», «decisões sábias e simples», «um bom amigo acima de tudo». A todos Simão agradecia com uma ligeira vénia e um abraço ao discursante. A filha bocejou. Chegou a hora do discurso. Simão começa a levantar-se. Uma ligeira dor na têmpora faz com que leve a mão à cabeça. Subitamente, a sala é devorada pelo vazio. No lugar das mesas surgem árvores e um lago. Pelo meio, caminha Simão com uma bengala na mão direita. Vagarosamente. A seu lado um casal de namorados troca alianças de amor enquanto à sua frente o mesmo casal discute e o homem vira costas à mulher. De trás de uma árvore saem dois homens um recebendo pequenos papéis e o outro aceitando notas. Enquanto um desdobrava o pedaço de papel outro era agarrado por dois homens fardados de azul que o levavam para um carro, também azul. Dois velhos num banco discutem sobre a quem pertence o pedaço de areia no chão fazendo riscos atrás de riscos acabando por se voltarem de costas um para o outro. Uma viúva conversa com os filhos noutro banco do jardim procurando convencê-los que aquela era a última vontade do pai. Simão continua a caminhar até um estrondo de dois automóveis a chocarem estancarem a sua marcha. Ao lado, um homem de fato cumprimenta outro, também de fato mas em chamas. Assustado, muda de direcção para onde a calma parece reinar. Pára junto de um portão. Com as duas mãos empurra-o abrindo-o lentamente.
Uma longa avenida rodeada de árvores. Caminha com o sol a passar por entre as folhas e a iluminar-lhe a cara. Sem saber porquê, olha para o lado. Um buraco, fresco com uma pá ao lado. Estático. Um breve relance pela avenida. Ao fundo um grupo de pessoas de preto a seguir um carro. Sair daqui. Sair o mais depressa. Atira a bengala para o buraco e vira na primeira via caminhando com maior facilidade e sem cabelos brancos. Volta a virar e correndo exibe o vigor da juventude. A saída. Ultrapassa o portão e vê-se reflectido no vidro de um carro. Uma criança. Uma criança com olhos profundos. Os mesmos olhos que estão fixos em si à espera que fale. Querida Belle.
A dor já passou. Um ligeiro incómodo atravessa a sala de jantar. Simão cerra os punhos e apoia-os na mesa. Depois, lentamente, olha em frente e ergue-se. Pega num copo ao que todos se levantam e o imitam. Olhando para a mulher e para Belle pronuncia:
À vida.

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