22 dezembro 2005

Belle-fim.


A mãe estende-lhe a gravata. Belle aceita-a e levanta a cabeça do pai. Desdobra os colarinhos e passa o tecido às riscas pelo seu interior. Cuidadosamente pousa a nuca e junta as duas pontas até se unirem para sempre num nó. Belle olha para o pai. Fato escuro e camisa branca. Cabelo penteado para trás.
Estás pronto.
A cera das velas escorre na prata. As pessoas sucedem-se em cumprimentos e beijos.
Tenha paciência. Está melhor assim. É a vida.
Fugir daqui. Quero sair desta capela envolta em fumo e náusea de flores.
As portas abrem-se de par em par. A luz do sol ilumina a cara dos querubins. As pessoas começam a sair.
Sem saber como beijo a cara fria de meu pai.
O caixão desce apoiado numas cordas qual vela que se recolhe no fim da viagem. Enquanto os torrões caem no verniz, Belle afasta-se. Simone espera-a no carro onde também está seu o Jorge.
Mãe e filha despedem-se. Silêncio. O vento revolta o cabelo de Belle.
Adeus.
Café. Belle, Simone e Jorge comem calados. Jorge ousa interromper o silêncio.
Outro dia falaram de ti na televisão. Por causa daquele caso do puto e do inspector morto. Não vai ser fácil.
Belle acena ligeiramente a cabeça.
Pois não. Mas por que é que Simone não olha para mim?
No apartamento, Simone conta-lhe. Conheceu uma pessoa em Madrid. Pinta, escreve poesia. Um artista.
Sabes, tu sabes, é daquelas vezes em que sentimos que temos de agarrar a vida.
Belle compreende. As viagens, as últimas e constantes intromissões da imprensa.
Quanto tempo pensa que vai demorar o julgamento? É casada? Tem filhos?
Nunca disse nada. Viu a sua fotografia a entrar no tribunal, a sair do carro, a sair do prédio, a entrar no supermercado, a mostrarem a casa dos pais, a contar o acidente do Pedro.
Simone abre a porta e olha para trás. Belle está de costas.
Olha para mim, por favor. Jura que ficas bem.
Belle volta a cabeça e sorri ligeiramente. Não te preocupes.
O bólide amarelo desaparece na avenida enquanto Belle se atira para o sofá. A seu lado um dos muitos papéis que a acompanham. Pega na capa e retoma a leitura.
«O inspector João terá entrado em perseguição do António Chaves, também conhecido por Rogério e ao virar numa rua foi atingido por um soco desferido por aquele. Momentos depois o inspector João terá ligado o gravador que trazia consigo e é possível ouvir António Chaves a falar na sua mulher que trata por juizinha e no seu filho. Fala também e dia que o caminho dele é outro. Instigado pelo inspector João ainda se refere a um motorista que se veio a apurar ser o agente Xavier que está preso preventivamente por ordem do juiz de instrução do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa. Consegue-se ouvir na gravação o disparo que atingiu mortalmente o inspector João.
António Chaves foi detido em 17/12/2003 e aguarda a realização de julgamento em situação de prisão preventiva também por decisão do TIC de Lisboa.
Caso a Excelentíssima Sr.ª. Coordenadora concorde pensa esta brigada que o processo está pronto para ser enviado ao Mº. Pº. para que seja proferida acusação em relação aos crimes de abuso sexual de menores, homicídio de Paulo e inspecior João
.».
Depois disto houve acusação, instrução, recursos e hoje, 17 de Dezembro de 2005, falta menos de um mês para o inferno começar. Para mim e para eles.
Belle olha agora pela janela a chegada dos presos. Os flashes das máquinas sucedem-se. Os repórteres atropelam-se para conseguirem entrevistar as estrelas. Os miúdos já estão no tribunal desde ontem. Fora da vista. Sem vida própria.
Estás preparada?
Sim.
Sabes que se vão lançar com toda a força à tua vida privada. Além de continuarem a dizer que como conheces a mulher do António Xavier não és imparcial apesar de o Supremo já ter indeferido esse pedido de recusa. Estás preparada?.
Sim. Sim, Pedro. Não te preocupes. Hei de safar-me.
A porta abre-se. Numa fracção de segundo não consegue evitar lembrar-se de seu pai deitado na capela. Entra na sala. A sala está vazia e duas tribunas laterais vestidas de preto levantam-se.
Bom dia, senhores doutores. Podem sentar-se.

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