21 novembro 2005

Belle-V


Ora bem, pratos, talheres, copos de água e vinho (Simone gosta mais de cerveja mas hoje tenho aí um vinho para ocasiões especiais), tostas, paté e guardanapos de pano.
Belle inspecciona a mesa com os lábios ligeiramente para a frente e com dois dedos da mão direita a tocar-lhes. Há muito tempo que não vê Simone, a sua colega de liceu que nunca mais deixou de contactar ainda que não esteja com ela tanto como gostaria. Simone é arquitecta, escultora e loira. Nem sempre por esta ordem mas sempre juntas. Enquanto Belle estava no Centro de Estudos Judiciários privaram bastante tempo. Iam ao cinema, teatro, exposições, umas vezes com o Pedro, outras não. Belle nunca percebeu muito bem se Simone gostava do Pedro mas no fundo pensava que havia ali uma mescla de amizade e ciúmes.
Belle vai à janela e vê o Fiat Barchetta a estacionar. A porta do lado esquerdo abre-se e uma cabeleira loira avança em direcção ao prédio enquanto as luzes amarelas do descapotável piscam.
Viva, morenaça. Estás em grande forma! Tens de me dar a receita para essa juventude.
Como sempre, Simone é a elegância. Um blusão branco forrado de pele, cabelo cortado irregularmente e esticado, olhos realçados a negro.
Que mesa espectacular! Sim senhora, a juíza sabe receber. Pára junto á mesa. Olha para Belle e abrindo os braços, abraçam-se.
Desculpa não ter ido ao funeral. Estava no Guggenheim e não deu.
Belle sabe que Simone não suporta funerais. Não percebe a finalidade da coisa. Se a vida são dois dias, por quê desperdiçar um usando o preto que abomina?
Vamos, senta-te. Temos tanto para conversar.
Claro. Por acaso não tens…
Cerveja. É para já.
Beberam o vinho, conversaram enquanto ouviam música que saía da alta fidelidade e calavam-se.
Já passaram quase dez anos, Belle. Lá por que te vestes de preto durante o dia, não quer dizer que sejas uma freira. Não apareceu ninguém?
Houve algumas pessoas mas, tu sabes, não é fácil. Às vezes penso que estou sempre errada, espero ouvir o que nunca me dizem, quero sentir o que só eles sentem e conversar o que só converso contigo.
Simone sorri. Levanta-se e com o cigarro na mão esquerda, volta a cabeça em direcção a Belle.
Não há pessoa como tu Belle. Disso eu tenho a certeza. Vem para Lisboa. Deixa esta parvónia e trabalha mais perto de mim.
Volta a olhar para a janela. O mundo lá fora está desfocado. Simone sabe que não pode ir muito mais longe. O coração bate apressadamente. Deve ser do vinho.
Belle sorri. Esta relação ambígua irritava o Pedro que citava sempre a mesma rase de um filme de Woody Allen em que Meryl Streep o trocava por uma mulher. Nada disso. Não da sua parte. A vida de Simone dava um filme. Namorou actores, políticos, casou com um advogado, divorciou-se, abortou quando caiu do cimo de bloco de mármore frio e liso e agora é adida cultural nos Estados Unidos. Tem um apartamento em Lisboa onde passa cerca de cinco meses por ano. E aqui está ela a pedir-me para ir viver para perto de si.
Mas tu agora és mais americana que portuguesa! Que vou eu fazer para Lisboa? Concorre para um tribunal Criminal onde ainda apanho políticos e pedófilos para julgar? Estou bem aqui (acho).
It´s your life. Bah, isto está a ficar demasiado sério. Que dizes, vamos sair? Vá, mostra-me onde é que os campónios se divertem.
Agarra na bolsa e saem para o elevador. Entram no bólide amarelo e disparam em direcção à ponte. Do outro lado a noite está iluminada. Enquanto as luzes se reflectem no vidro, a ideia de voltar para Lisboa não lhe sai da cabeça. A seu lado o rio dorme tranquilo. Talvez.
Chefe, acho que apanhamos o homem. É para o seguir?
Sim, vá para onde for. Já temos os mandados.
O homem que se dizia chamar Rogério apanha um táxi em direcção ao aeroporto. O Renault 11 arranca conduzido pelo inspector João.

Em próximo post: estocada final-II.

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