07 novembro 2005

Paulo





Vamos, força! Só mais um pouco, só mais um pouco!
O resto do corpo de Paulo sai para a vida. Todo ensanguentado espera pela pancada que lhe dá voz. Colocam-no num berço arrumado entre outros em fileiras. Todos iguais. Duas horas depois já estava ao peito da mãe. Tão giro, diz a enfermeira. O pai já viu o bebé? A mãe não responde. Nessa mesma noite tira a roupa branca do hospital e vestindo a camisola que trazia quando aí entrou foge.
Dão pela sua falta na próxima toma. A assistente social pega-lhe ao colo. Paulo vai mudar de casa. Na televisão da sala de espera Bob Geldof apela à luta contra a fome em África.
Paulo joga futebol com os outros miúdos da instituição. Nunca tem visitas. Nunca se descobriu o paradeiro da mãe. É feliz, no seu mundo. Gosta das vigilantes e dos colegas e até a Directora gosta dele. Moreno, olhos escuros, pretos. Magro mas forte. Nunca esteve doente nem quando foram todos até à serra e apanharam uma carga de chuva que arruinou o piquenique e constipou a instituição.
Paulo, tens uma visita. É uma pessoa muito simpática que te quer conhecer. Queres vir?
Já tinha visto pessoas que iam à instituição e que depois acabavam por levar os colegas com elas. Às vezes para sempre (adeus Jójó que ia sorridente com os seus novos pais).
Paulo encontra-se de frente para o senhor.
Olá! És o Paulo, não és? Queres vir ali comer um bolo comigo e conversar um pouco? Gostava de te conhecer melhor.
A Directora, ligeiramente afastada para um canto do hall, observa a reacção do Paulo.
Não és casado?
Não, já fui mas a minha mulher teve uma doença e…morreu.
Está bem. Tenho fome.
Mais bolos e sumos se repetiram até que começaram a fazer algumas viagens. Foram ao futebol, ao cinema e ao circo. O Sr. Rogério era muito simpático. Paulo começou a levar para a instituição alguns brinquedos novos. Uma bola, um Action Man e até um Nintendo. Começou a ficar isolado. Interessava-lhe mais a vida lá de fora, com mais viagens e boa comida.
Não consegue lembrar-se, enquanto as luzes azuis da ambulância o cegam, como tudo começou. Uma carícia na testa. Um beijo à despedida. Um dar de mãos mais prolongado na entrada do cinema. Um toque de pernas no circo. Quando se apercebeu cada vez tinha mais prendas. Na instituição começou a ser evitado. Os comentários sucediam-se mas também pouco lhe importava. Praticamente só lá ia dormir. Tinha melhores roupas que todos eles e sabia que aquele não era o seu lugar. Um dia, ia ter idade para sair dali para sempre e ir viver no estrangeiro como o Rogério lhe prometeu.
No último dia, viajaram de carro. Paulo via as pessoas a passear na cidade através do vidro fumado. No semáforo a luz vermelha pára a viagem. E vê. Vê um miúdo a olhar para dentro de si mas em que a ligeira camada de volfrâmio no vidro impede que se reflictam. E vê Jójó a dar a mão ao pai e à mãe. Apetece-lhe abrir o vidro mas quando o ia fazer a luz verde afasta-o do amigo.
Onde vamos? Não é este o caminho para casa.
Foram para fora da cidade. Serpentearam pelos caminhos da serra e chegaram à casa. Entraram e o cheiro a sexo invadia todas as divisões. Subiram as escadas e percorreram um longo corredor. Por cada porta que passava Paulo ouvia os gemidos a que estava tão habituado. Era o dia da primeira festa de Paulo. Entraram num quarto.
De joelhos. Rogério senta-se num cadeirão e desaperta o colarinho. Agarra calmamente num copo com whisky a seu lado e bebe um longo trago. Tem sempre a garganta seca nestes momentos. Começa a tirar o casaco enquanto vê Paulo a despir-se. O telemóvel toca.
Não pode ser! Vou já!
Veste rapidamente o casaco e desaparece a correr pelo corredor. Paulo, assustado, começa a vestir-se. De rompante, entram dois homens no quarto que o agarram e levam para um outro carro que arranca a toda a velocidade.
Não conhece este caminho. O carro pára.
Desculpa rapaz mas tem de ser.
O inspector observa o corpo do rapaz que entra na ambulância. Não mais de quinze anos. E bateram-lhe bem. Talvez um taco que lhe rachou o crânio. Observa-lhe a face enquanto os paramédicos lhe abrem as pálpebras. Ainda está vivo.
Paulo está deitado de costas na pedra. Uma luz forte ilumina-lhe os olhos abertos. Corpo gelado sem frio. O médico legista encosta a faca no cimo do peito.

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