12 outubro 2005

Conto-Capítulo III


Há poucas nuvens no céu ainda negro da cidade. O quarto de Constantino está impecavelmente arrumado. Abomina-o mas a mãe, sempre preocupada com os afazeres domésticos, não deixa um grão de pó respirar.
A primeira visão do dia, desanimadora quanto baste: a nossa cara depois de uma noite de insónias. Barba branca a despontar nos sulcos das rugas e na papada que começa a despontar no pescoço. A brilhantina do dia anterior seca e a provocar irritação no couro cabeludo. Mas Constantino vive afastado de qualquer padrão estético. Não que seja um homem desinteressante; apenas deixou de se interessar. Porquê? Talvez o corpo inchado de uma mulher a flutuar no rio, com os detritos a saírem-lhe da boca o afastem da tentação de se entregar a alguém. Talvez a multidão na ponte que assiste ao espectáculo sem pagar o bilhete. Talvez a expressão do bombeiro ao retirar o corpo da água gelada. No espelho da casa de banho brilha um capacete e os cabelos ensopados da namorada atingem-no em plena face.
- Ela era doida, Constantino. Sempre te disse que ias acabar por ter um desgosto.
Todos sabem. Ninguém percebe. Mas todos fingem perceber. E eu, sozinho, não sei nem percebo.
Constantino saboreia o café amargado pelo fracasso da noite passada. O comboio chegara vinte e sete minutos atrasado em relação à tabela. Os dois agentes são os últimos a abandonar a carruagem. O mais corpulento leva um cigarro aos lábios enquanto o outro companheiro de viagem levanta a gola da gabardina. Pela primeira vez, Constantino tem dúvidas. A segunda vez ser-lhe-à fatal.
Abandonam a estação e seguem pela Avenida acima, em direcção à Pensão. Sobem as escadas ignorando o olhar cúmplice da porteira. Constantino ordena que derrubem a porta.
Tic, tac. Tic, tac. É o único som vivo que se ouve no quarto vazio. O inspector e os dois agentes que há pouco chegaram à cidade não pronunciam uma silaba. Constantino, com a testa apoiada no braço esquerdo, espreita pela janela. As árvores da Avenida estão carregadas de frutos luminosos que empalidecem o brilho natural dos astros. Um varredor observa atentamente dois indivíduos que giram à volta de um tripé. Um deles guia o funcionário camarário, colocando-o em frente da máquina fotográfica. Os músculos da face do inspector contraem-se. Constantino não tem nenhum motivo para imortalizar a noite de dezoito de Dezembro de mil novecentos e sessenta e dois.
Os colegas ao cruzarem-se no seu caminho também fingem ao não repararem no esqueleto da secretária que Constantino arruma dentro de uma pasta. Um homem precisa de saber cair. E Constantino não descura a oportunidade para subir numa queda. Como daquela vez em que o jogo era rebolar pelo monte abaixo, simulando uma ferida mortal. Os olhos brilham enquanto vence o declive. Já não dobra os papéis; amassa-os, sem piedade pela segurança do País. Pára no cimo e abre os braços. Atira com uma gaveta para o chão e todos sustêm a respiração. Soa um tiro. Constantino inclina-se para a frente e agarra no osso partido da secretária. Imobiliza-se uns segundos e deixa-se cair. Aterra aos pés da miudagem que o olha assustada. Forma-se um círculo à sua volta e quando um dos rapazes se debruça para lhe dizer que a brincadeira acabou, Constantino dá um salto e começa a rir. Enfia o chapéu, limpa a terra dos calções e vai-se embora assobiando. Para casa.
A garrafa está hasteada no cimo do parapeito. O esporão do forte sulca o nevoeiro enquanto Constantino navega na praia. A espuma das ondas encobre os vómitos da bebedeira. O ex-inspector, de calças arregaçadas até aos joelhos, ainda tem força para dançar. A música centenária irrompe dos saraus do castelo. Camilo distribui galanteios pelas damas da sociedade e Constantino atira os sapatos para as rochas. Os primeiros raios de sol iluminam as barcaças dos pescadores. Longe, muito longe. Constantino salta por entre as ondas, de braços levantados em arco acima da cabeça e cabelo revolto pela areia. A música recua até aos tempos primitivos e a dança assemelha-se a um ritual selvagem. Violentos pontapés atiram pelo ar incontáveis bolhas salgadas. Os peixes caem no fundo das embarcações, ainda em vida mas sem esperança. Afinal Constantino não foi para casa. Atirou a pasta para dentro do apertado Austin e arrancou, deixando para trás os receios de um regime. Pensou em ir às putas mas trocou-as pela solidão do alcool. Deu à costa no deserto da praia. As ondas enregelam-lhe os pés enquanto respira com dificuldade. Alguns pescadores ao regressarem reparam nele e abanam a cabeça. Constantino orienta o trânsito impedindo que as embarcações choquem no cruzamento. Começa a recuar até que deixa de se fazer ouvir. Adormece quando a cidade se levanta.
Madalena era a louca mais doce que palpitava no manicómio. Servia à mesa os velhos que escorriam baba pelos queixos desdentados. Compunha os lençóis ensanguentados da cama do Almirante que coçava insistentemente a perna onde se lhe ajolou um estilhaço. Cantava modas e virava e tornava a virar no silêncio das palmas. Tomava banho e transpirava enquanto não sentia a água demasiado quente sobre a pele.
Tinha olhos verdes. Prendia o cabelo atabalhoadamente e sorria de soslaio. Constantino está à espera da mãe enquanto observa o mar pela janela. Vieram visitar a tia que é enfermeira. Os gritos percorrem os corredores e de uma porta cai um homem de bata branca agarrado aos testículos. Uma empregada acorre a ajudá-lo e Constantino aproxima-se do quarto. Madalena acaba de arranjar o cabelo e sorri-lhe. Todos os anos que viveu com a mãe deixam de ter importância para ele e mergulha numa verde loucura. Madalena dirige-se para a porta e beija-o nos lábios. A tia e mãe chegam e Constantino afasta a mão do homem de bata branca que lhe pede ajuda.
-Quem é?
Ninguém lhe responde pois todos se precipitam em socorrer o homem de bata branca que se arrasta aos gemidos. Constantino caminha até ao fim do corredor enquanto o homem de bata branca se agarra à maçaneta de uma porta e segura o escroto que lhe cai pelas pernas. Vê-a descer umas escadas em caracol, sempre a correr. Segue-a, o sangue do Almirante pinga no chão, meios-homens de braços vigorosos rodopiam em cadeiras de rodas e ama-a. Quem é? Na vertigem da descida, ignora os que o imitam e riem do cimo das escadas. O vento sopra forte. Madalena solta o cabelo e bambolea ao som da música do mar. Constantino quer agarrá-la e encostar o seu corpo ao dela. O manicómio é arrastado pela ventania, levando consigo a estranha tripulação que encerra no seu ventre. Constantino está quase no mesmo barco de Madalena e ergue a mão para se ancorar. Ela volta a cabeça.
- Eu não sou louca, Constantino.
Como soube o meu nome?
Madalena apercebe-se do seu espanto e volta a sorrir.
- Quero dançar até ao fim. Acompanhas-me?
Constantino segura-a e deixa-se conduzir. Rodopiam sem parar até que Madalena se atira aos seus pés. Depois, com os olhos marejados de lágrimas, pergunta-lhe:
Amas-me?
Sim, loucamente.
Começa a levantar-se e com as mãos brinca com o cabelo do inspector. Solta pequenas risadas e mostra a língua. Beijam-se.
- Vou tirar-te daqui. Mas, quem és tu?
Solta-se dos braços de Constantino, volta-se de costas e dá alguns passos em diante, murmurando o seu nome.
- Gostas?
Os enfermeiros afastam Constantino e agarram Madalena. As gaivotas seguem-na e planam sobre o terraço.
Bastaram duas semanas para a ver descer do comboio, com uma mala demasiado grande e de lenço à cabeça. Ela não o viu e então parou no meio do movimento de pessoas a sair e sentiu-se mais perdida que nunca. Quis voltar atrás mas o revisor impediu-a de entrar na carruagem.
- Madalena!
Alojou-a numa Pensão cuja dona dona era sua conhecida e convenceu a mãe a ensinar-lhe costura. Queria sempre terminar o serviço o mais cedo possível só para poder estar com ela. Só que ás vezes eles não falavam Era preciso bater-lhes. Ou mandá-los para longe, para o outro lado do oceano. Um dia abriu a porta do quarto e não a encontrou. Desesperado, perguntou ao recepcionista se a tinha visto. Não, ninguém a via desde a hora do almoço. Pensa Constantino. Não pode ter ido longe. Percorreu inúmeras artérias e vielas, ruas e ruelas até que resolveu desistir. Ao chegar à pensão, Madalena estava à porta. Nunca a viu tão feliz. Agarrou-se ao pescoço dele e beijou-o por toda a cara. Constantino não lhe perguntou onde esteve. Abraçou-a toda a noite.
Durante os primeiros meses apenas um nervoso roer de unhas deixava transparecer a doença. Mas o cérebro estava a ficar minado e os medicamentos tornaram-se inúteis. Ficava horas a olhar para o a espelho, ora chorando ora sorrindo de soslaio para ninguém. Constantino estava fora muitas vezes e as conversas ao telefone da recepção deixaram de ter sentido.
Fez a cama , penteou-se e vestiu a saia aos folhos. Olhou pela janela à procura dele. Não o viu. Passou pelo gerente com o mesmo sorriso de sempre mas o brilho dos olhos deu lugar ao verde raiado de dor. Despediu-se de todas as pessoas com quem se cruzou na rua. Parou no meio da ponte. O sol estava quente mas Madalena não o sentia. Na descida, lembrou-se do Almirante e de como ele ria enquanto dançava à sua frente. Amas-me?
Constantino acorda sobressaltado e sem saber onde está. Aos seus pés uma gaivota seca as asas ao sol.
Amo-te. Loucamente.

Fico então a aguardar comentários. Em próximo post, processo penal-julgamento.


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