02 novembro 2005








A greve foi um sucesso. É certo que a população ainda não percebeu o motivo da nossa luta mas a seu tempo irá dar-nos razão. O Governo não pode continuar….
Simão desliga o auto rádio. Conduz em direcção ao Tribunal da Relação onde vai ter a última sessão (a outra foi adiada devido à greve).
Todos sentados à volta da mesa brilhante e enorme. A cadeira nunca lhe foi confortável (demasiado baixa) mas apesar de tudo sentia-se bem. Os colegas. Tem de admitir que podia ter sido bem pior. Todos trabalhavam e raras vezes assinou acórdãos que lhe suscitassem muitas dúvidas mas a verdade é que mesmo nessas alturas não quis levantar ondas.
Hoje trouxe cinco projectos de acórdãos tendo todos sido aprovados sem qualquer voto de vencido. Será comiseração? Lembra-se daquela série em que soldados ingleses tinham de desactivar bombas não detonadas e em que no último episódio, o capitão, já com três pernas, quis desactivar a última. Caiu por cima da bomba, deixou cair a ferramenta em cima dela e por fim, quando chega ao detonador, repara que já estava desactivada com um papel a dizer: Best Wishes from the Fuhrer. Talvez não.
Não se arrepende. Ainda se lembra, no tempo da ditadura, de ter conta aberta na mercearia e de ter a simpatia do dono em só pagar no fim do mês. De raramente comprar novos casacos pois os dois filhos bem precisavam mais. Das horas e horas que passou a escrever à mão despachos e sentenças. Tudo isso passava com a certeza que na maioria das vezes a sua decisão era respeitada.
Na primeira manhã de liberdade perdeu-se a caminho do tribunal. Perdeu-se na confusão de cheiro de suor e flores, de amor e ódio. Pensou que nada mais seria como dantes. E não foi. Veio o F. M. I., a C. E. E., a U. E., Maastricht, Nice, o Euro. Governos subiram e caíram, o povo manifestou-se uma, duas, cem vezes. As leis mudaram e mudaram e mudaram enquanto os anos passavam, também por Simão, sem que se apercebesse. Acabou-se com a Corregedoria, criaram-se tribunais de círculo, acabaram-se com estes e criaram-se varas e juízes de círculo. As alçadas aumentaram., o processo-crime passou a exigir a presença do arguido no julgamento, depois só à terceira é que não era preciso, depois à segunda se fosse indispensável mas é preciso notificá-lo sempre pessoalmente da sentença.
Melhor? Pior? Nas palavras de cidadãos, políticos: muito pior. Mas antes não se falava de justiça pois quem podia aceder a ela? Hoje todos têm direitos. E quantos mais direitos, mais processos.
Confesso: se fosse juiz de primeira instância talvez não conseguisse. Saco da caneta e assino o Acórdão. Foi o último. A aposentação foi deferida. Não estou para ouvir dizer que os juízes não trabalham ou que tenho direito a viajar de graça de casa para o trabalho. Os recursos são infindáveis, qualquer despacho é recorrível. Os juízes perdem a cabeça e trocam palavras com advogados em processos ou em praça pública. Já não sou preciso nem aqui pertenço. Não me queixo de não ter dado atenção aos filhos como tantos colegas se choram pelos cantos de o terem feito mas vão para casa o mais tarde possível. Foi a minha última greve. Na primeira lutei contra o miserabilismo a que éramos votados. Nesta lutei contra todos: contra a demagogia e a mentira, deles e nossa. Deles por que me disseram, na cara, que só queria férias; nossa porque nos acomodámos numa cama com um colchão suave mas com molas frágeis. Por isso vou. Que diabo, I´m old but still like a good laugh at the locker room.
Abraços. Pá, havemos de combinar do teu jantar de despedida. Claro, claro. Onde todos dizem bem de nós, mesmo os que mal conhecemos ou não gostam de nós. Claro. Onde todos vão e só alguns estão. Claro.
Mete as chaves na ignição. Hoje, Simão vai jantar fora. Jantar de ricos. Jantar com mulher, filhos, noras e neto. O mais rico de todos. Em família.
Próximo post: mais Amélias mas também Belle na praia.




2 Comments:

Blogger Usual Suspect said...

Acho que todos os "homens Bons" queriam estar no lugar do teu Simão:

http://ciberjus.blogspot.com/2005/10/descanso.html


http://incursoes.blogspot.com/2005/10/sonhos-enjoos-e-desiluses.html

A sensação de ter levado um murro no estômago com tudo o que se tem passado é a única que perdura.

Que tal amanhã no tua trotinete até às Bahamas, e esquecemos o que fazemos ou somos?

Ou então traz de volta o Tony, que acho que é o único que ainda consegue lutar no meio desta maralha....

novembro 01, 2005 4:33 da tarde  
Blogger Sónia Sousa Pereira said...

Moicano esquisofrénico...

Excelente!

S

novembro 02, 2005 6:24 da tarde  

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