14 novembro 2005

Sonho


António sai a correr do prédio que o abriga durante todo o dia e procura a paragem de autocarro enquanto a chuva cai copiosamente sobre a sua nova gabardine. É o último dia do mês e passou o dia a arquivar inquéritos e deduzir acusações a tempo da estatística estar pronta. Chega ofegante à pequena barraca de vidro e começa a espera. Está frio. O ar sai-lhe condensado pela boca. Um automóvel ao virar numa rua faz incidir a luz dos faróis nos olhos e reflexamente vira-se de costas. Fica de frente para o vidro deste outro abrigo e não pode evitar: vê a sua imagem. Está cansado. E sem saber por quê, lembra-se da história da menina e do outro lado do espelho. Como seria a vida do lado de lá do vidro?
António sai com um grupo de colegas amigos do prédio ultra moderno. O sol brilha e as pessoas correm na azáfama das compras. Resolvem ir tomar um copo enquanto telefonam às mulheres e lhes dizem um amo-te sem as deixarem falar. No outro lado da cidade os meninos e meninas de uma escola vivem uma aula de poesia nos campos verdes do parque. O professor cita as palavras sobre rios e vales enquantos os olhos das crianças reflectem o seu vulto desenhado na neblina do entardecer. Noutro País, umas freiras pedalam freneticamente nas suas bicicletas em calças e camisas informais querendo chegar depressa à missa que a madre já pode celebrar. No deserto, de um poço há muito julgado seco começa a correr um pequeno e translúcido fio de água. No Brasil, o índio e o homem branco plantam mais um árvore. Na mesquita, o judeu e o árabe abraçam-se enquanto na televisão os governantes assinam o Tratado de Paz. Em África o miúdo sorri enquanto o médico aprova o seu peso. Na Índia as pessoas visitam o museu onde existe uma recordação do riquexó. Um padre ao ouvir a confissão de uma mulher que abortou afasta a cortina e abraça-a. No espaço, um russo descobre uma falha que se julga ser o outro lado do Universo. Uma pequena racha no vidro que distorce a visão de António que ao lhe tocar o puxa para o lado de cá. O autocarro chega. Lá dentro o ar está abafado. As pessoas acotovelam-se e pisam-se. A porta fecha-se. Ainda consegue ver por entre a chuva a mãe negra pegar ao colo o filho que encostando a cabeça no seu ombro sorri para António. O contentor de pessoas arranca.
Um pequeno momento de alegria e sonho. Bolas, perdão. Todos temos dias maus. O deus do trovão esteve muito tempo comigo.

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