09 novembro 2005

Belle-III




Pelo exposto vai a arguida Amélia dos Santos Pereira condenada na pena de multa de 120 dias, á taxa diária de € 3,00 no total de € 360,00. Mais vai condenada a arguida nas custas do processo com o mínimo de taxa de justiça,…
Belle agrupa as folhas da sentença e coloca-as no interior do processo. Percebeu D. Amélia? Mais ou menos. Tenho de pagar a execução não é?
Belle resume oralmente o que acabou de escrever e sai da sala com a sensação que precisava de duas horas para lhe explicar por que tinha sido condenada. São 16.10 horas e o tribunal já fechou ao público. A mesa já tem os montes do dia seguinte e podia despachá-los para no dia seguinte estar mais calma. Mas olha pela janela e o Sol convida a sair. Os primeiros raios de calor começam a sentir-se e resolve ir até à beira-mar. Talvez tomar um sumo enquanto vê as ondas do mar a abraçarem a areia.
Estaciona o carro e pára junto de um pequeno muro que lhe dá pelos joelhos e que separa o cimento da areia. O sol faz-lhe brilhar o cabelo enquanto protege os olhos com a máscara. Não consegue evitar de pensar enquanto vê a praia deserta. Resolve pular o muro e descalçando-se começa a caminhar pela areia com os sapatos na mão direita. E vem-lhe à memória uma história batida pelo seu coração.
Lisboa. Centro de Estudos Judiciários. Belle e Pedro namoram há um ano e com o aproximar do fim da fase teórica a ideia de casamento assalta-lhe por diversas vezes a mente. Vivem juntos num andar na Graça e pode garantir que foi o melhor ano da sua vida. Ela e o Pedro ajudaram-se muito nos estudos e a nível sentimental e físico tudo correu bem. Os docentes não souberam dessa relação com algo de proibido para mentes conservadoras (ainda se recorda da má cara da sua ex-futura sogra na estação de comboios).
Adorou Lisboa. Tudo era grande: os monumentos, as avenidas, os centros comerciais. Nem reparou na impessoalidade da urbe (o Pedro estava sempre junto de si).
Quando as notas saíram não sofreu muito. Não só por saber que tinham boas notas mas por que só faltavam quinze dias para ter de ir embora. E o Pedro ainda não lhe tinha dito se ia concorrer para o mesmo tribunal que ela ou se ia ficar por Lisboa. E foi na praia, num pôr-de-sol magnífico, com algumas nuvens que se lembra de ver nos postais religiosos (e no Forrest Gump) como referência a Deus que começou a perder a fé na sua relação. O Pedro desfez-se em beijos e carícias e promessas de que nunca se iriam separar mas que queria fazer carreira na capital e que até um dos docentes lhe tinha indicado uma possível formadora.
Belle não chorou. A vida que Pedro lhe dava tinha sido do melhor. Mas não queria viver na capital. Os seus pais, a irmã mais nova, a avó eram laços muito fortes para começar a viver em Lisboa onde não conhecia ninguém. Quando assentasse na carreira aí sim, poderia pensar em mudar; agora não.
Cobarde. Enquanto veste o blusão de cabedal e puxa os óculos para a cabeça, pensa que errou. Nunca devia ter deixado o Pedro só em Lisboa. Nunca me traiu. Só a vida lhe pregou a rasteira final. Ela chegava no comboio da 22.30 horas. Pedro saiu atrasado do apartamento em Sintra. Tinha caído uma chuva miudinha. Numa curva não conseguiu controlar o A3 e embate num paredão do outro lado da estrada. O air bag sai numa golfada de gás mas a pancada foi demasiado forte.
Belle enrola os braços pelo corpo e caminha em direcção ao carro. Passa por um quiosque. Nos jornais os títulos a negro realçam a morte do miúdo na Serra. Mais um. Espero nunca apanhar um processo destes. Não sei se tenho estofo para encarar um pedófilo.
O inspector aguarda do lado de fora da sala. O médico legista retira a bata.
Então, que me diz, doutor?

Sei que as minhas histórias são obsessivamente mórbidas. Mas em vez de relatar a minha insípida história triste, relato a dos outros. Acreditem, é uma forma de terapia. Os outros têm problemas mais graves que os meus. Mas um dia destes vou fazer duas coisas: escrever a sério (como já fiz em tempos) sobre a justiça e a brincar. Um abraço especial para Magnólia a quem só espero não desiludir muitas vezes.

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