17 novembro 2005

Belle-IV


O ancião que está à sua frente tem as lágrimas a escorrer pelo rosto. Belle volta a perguntar.
Explique-me por que motivo insiste em permanecer no Lar quando tem uma casa onde pode viver com todo o conforto, tem filhos que estão dispostos a ajudá-lo e persistentemente maltrata a sua mulher?
Está a ser muito difícil adaptar-me a esta situaçãom Srª Doutora. Eu falo com ela e quando me esqueço de quem ela já não é, começa aos berros e a gritar pelo enfermeiro a dizer que está um estranho no quarto. Mas viver sozinho em casa ainda me deixa pior. Eu sei que faço mal e que não lhe devia gritar…
E bater. De acordo com o que aqui diz o senhor chegou a bater-lhe uma vez antes do jantar à frente de diversas pessoas.
Isso não é bem verdade. Eu ia bater-lhe mas não cheguei a fazê-lo.
Belle suspira. Para ela já chega. Ainda faltam cinco testemunhas e outros tantos processos para acabar a manhã de julgamentos.
Ao sair, bem depois da hora de almoço, senta-se, reclina-se na cadeira e com o comando liga a aparelhagem. Michael Stipe proclama que sometimes everything is wrong. Fecha os olhos. E sozinha, nesta vida, quando pensa que já se viveu demais, agarra-se. Ao pai. Tinha uma calma olímpica. Alto, elegante com uma barriguinha que mal se percebia por debaixo da camisola. Advogado de província. Defendeu ricos e pobres. Adorava o que fazia. Levantava-se cedo e quando tinha julgamentos pedia ao funcionário para o deixar entrar na sala e sentar-se na bancada reservada aos advogados para poder espalhar os papéis. Belle não consegue evitar um sorriso ao ver a desarrumação do seu pai na sua mesa. Só uma vez o viu em julgamento. O pai nunca soube. O caso gerou ansiedade na população. Marco era cigano. Todos o conheciam de vender bugigangas, casacos e alguns rádios de pilhas. Nunca ninguém o tinha visto em qualquer tipo de problemas tirando os casacos que na primeira lavagem começavam a desfiar. Mas naquele dia houve quem o tivesse visto a falar com a Dona Antónia na estrada a gesticular muito enquanto a senhora abanava com a cabeça. Nessa mesma noite, após longas horas de buscas, D. Antónia foi encontrada dentro de um poço sem vida. A autópsia revelou que morreu de uma pancada na cabeça provavelmente ocorrida na parede do próprio poço.
Marco foi preso no segundo dia após a morte. A polícia valeu-se dos depoimentos de duas senhoras que juraram que o viram a discutir com a D. Antónia mas como iam com pressa para o campo não disseram nada na altura.
O pai de Belle olhava a sala cheia enquanto traziam Marco. Tinha emagrecido notoriamente. E Belle, na última fila, escondida atrás de um corpulento camponês viu quase tudo e ouviu tudo. E viu o pai a levantar-se e a falar. Falou pouco tempo. Lembra-se que terá dito que não havia provas presenciais e que as circunstâncias não podem condenar ninguém e que restava aos juízes cumprirem a sua missão. Lembra-se também de o pai lhe ter dito, dias depois, que o Marco tinha sido condenado. E também se lembra de enquanto o pai lhe mostrava um novo livro de histórias, nas escadas que davam para o jardim, um funcionário do tribunal, seu amigo, lhe dizer que Marco se tinha suicidado na cadeia. O pai levantou-se e fazendo uma festa no cabelo da Belle, entrou para dentro de casa sem dizer uma palavra.
Belle lembra-se de tudo isto. O pai não.
A noite fica bem a Belle. Com o cabelo puxado em rabo-de-cavalo e com um cachecol que realça a sua face branca, entra no edifício. Vê a mãe e dá-lhe um beijo. Como é que ele está? Bem, responde a mãe. Já sabes por que está à tua espera.
Sim. Quando Belle vem jantar com o pai ao Lar, ele faz questão de vestir o fato. Mas tem de ser a Belle a pôr-lhe a gravata por que só ela sabe fazer o melhor dos nós. Belle sabe que o pai acha que está a jantar com a sua mãe. Mas não importa. A memória esquecida do pai quase se esfuma perante a alegria com que olha para Belle. Lá está ele, sentado numa cadeira, impecavelmente vestido e com uma gravata na mão.
Olá.
Vou ler com muita atenção as sugestões do Dr. Joel sobre a não extinção de juízes de círculo e consequente criação de varas.

1 Comments:

Blogger moicano said...

Eu também sou adepto das varas especializadas. E obrigado pela sua permanente boa vontade em ler o que escrevo.

novembro 17, 2005 3:15 da tarde  

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