28 dezembro 2005

Conto de Natal-II




A luz irrompeu no quarto e as cortinas da cama foram afastadas por uma estranha figura. Parecida com uma criança mas no entanto mais parecida com um velho. O cabelo era branco mas a cara não tinha uma única ruga. O seu vestido estava cheio de flores de Verão. Mas o mais estranho era que da coroa que pendia da sua cabeça saía um raio de luz que tornava tudo visível.
É tu o Espírito cuja vinda foi anunciada?
Sou!
Quem e o que és tu?
Sou o Espírito do Natal Passado.
Passado muito passado?
Não. O teu passado. O que vais ver são sombras das coisas que foram e ninguém nos pode ver. Levanta-te e vem comigo!
Ah, a cama está tão quentinha e ainda não acabei de ler este interessante livro.
Vendo que o Espírito não aceitava as suas súplicas, Scrootes atirou: Sou mortal, apesar de ter maioria absoluta e o posso ser demitido!
Mas não adiantou. Passaram pela parede e pararam no buliço da cidade. Pelo aspecto das montras via-se que era Natal.
O Espírito pára na porta de um gabinete de engenharia e pergunta a Scrootes se conhece.
Se conheço? Eu fui aqui estagiário!
No cimo de um estirador via-se a cabeça de Fernandes. Scrootes gritou de excitação:
É o Fernandes. Deus o abençoe, está de novo vivo.
Fernandes pousou a caneta de tinta-da-china e disse: Ei, José, António!
A figura de um jovem Scrootes, de cabelo preto e comprido surgiu ao lado de um outro estagiário.
Meu Deus, o António, tão magrinho e tão novo!
Ei, rapazes, hoje não se trabalha mais! É véspera de Natal, vamos a arrumar isto tudo.
E de repente veio um violinista com a pauta da música, e veio a Srª. Fernandes com um riso na cara, e vieram as adoráveis três filhas do Fernandes. E vieram seis apaixonados que as meninas Fernandes despedaçaram. E vieram todos os homens e mulheres que trabalhavam no gabinete. E veio a empregada de limpeza com o seu primo padeiro. E vieram todos, uns alegres, outros tímidos e dançaram, dançaram e dançaram. E comeram e beberam chocolate e cerveja. Quando tocaram as onze horas todos pararam, O Sr. e a Sra. Fernandes colocaram ao lado da porta e cumprimentando todos os que saíam a todos desejavam um Feliz Natal o que também fizeram aos dois estagiários.
Vês, para manter alegre este povo só se gastaram alguns cêntimos. Tens mesmo de ser tão forreta com aqueles que votaram em ti?
Não é isso. O povo é maravilhoso. Quando se juntam em alegria e chamam pelo nosso nome sentimos um calor e uma vida que nos torna enormes e nos dá uma alegria tão grande como se tivéssemos uma fortuna.
Quem fala é o antigo Scrootes e não o actual.
O Meu tempo está a esgotar-se. Depressa!
De novo Scrootes se vê. Mais velho. Está sentado ao pé de uma rapariga vestida preto que tem lágrimas nos olhos.
Pouco te importa, Scrootes. Eu sei. Hoje para mim caiu um ídolo. E se te pode servir de consolo, não tenho nenhuma causa que justifique o desgosto. Sabes, tu temes demasiado o povo. Vi todas as tuas mais nobres aspirações caírem uma por uma até que a aspiração máxima te envolva na totalidade: Poder Absoluto.
E depois? Se estou mais esperto, qual o problema? Não te fiz qualquer mal.
Em palavras não. Mas mudaste. Já não és livre. A tua ambição assusta-me. Que certeza posso ter que não ter arrependerás de escolher uma rapariga como eu? Que não te acompanhe nesse desejo de seres o único a ter razão e de pensar que todos andam neste País a sugarem o que te pertence? Eu liberto-te Scrootes, pelo amor daquilo que foste um dia.
Tira-me daqui Espírito.
Isto é o que tu eras. Não me culpes.
Tira-me daqui, já disse.Não aguento mais. Quero ler aquele maravilhoso livro sobre juízes. Não me atormentes mais.
Scrootes acorda no seu quarto. Mal teve tempo de se arrastar para a cama antes de se afundar num sono pesado. A seu lado, a missiva do ministro das finanças a propor 1% de aumento.
Agora posso descansar pensou Scrootes.

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