01 janeiro 2006

Um rosto diferente


Do cimo da rocha observava o caudal do rio. Não há duas correntes iguais. E pensei: não podemos ser todos iguais. Não somos todos iguais. Neste País, somos todos diferentes. E, claro, somos todos melhores que os outros pois nós sabemos muito bem o que se passa e sabemos para onde vamos.
Eu, o que sei, é que se trata o diferente de forma igual. E que cada vez mais estamos iguais aos piores. Honestamente, não auguro futuro feliz a Portugal. E não se trata de pensar que a lei errou ao reduzir as férias judiciais, que o legislador é cego ao permitir que juízes que acabaram o estágio ganhem como estagiários, ao ter permitido que se formatassem juízes, incluindo do foro administrativo, apressadamente em denominados cursos especiais e, de repente, haja juízes a mais. Não, não é isso. Para mim, o português perdeu-se. Não se encontra entre o labirinto formado pelo consumo a que foi conduzido e a vergonha de ter de dizer que não pode. Perdeu-se ao pensar que podia criar empresas para enriquecer rapidamente e que isso não afectava a economia nacional. Embriagou-se na quantidade enorme de direitos laborais que nasceram com a revolução e que, em pessoas que teriam pouco mais que a quarta classe, eram a sua arma de ataque sempre que um patrão, ocasionalmente competente, pedisse mais trabalho.
O funcionário público não é feliz. Só o é o incompetente. Esse, ganha o mesmo que o competente, tem a mesma nota e ainda graceja com o árduo trabalho do colega; e se for preciso até lhe pede para não trabalhar tanto senão o chefe começa a exigir mais. O incompetente é o primeiro a gritar «Injustiça!». É o primeiro a dizer que não trabalha. E isto não sei se mudará.
Assisto preocupado, na minha pequenez, (que desde já proclamo) a uma clara sintonia entre Governo e grandes empresários. Aumentam-se pouco os salários dos trabalhadores: os grandes empresários aplaudem. Por que será? Clama-se por despedimentos e que é inevitável fechar empresas? Os grandes empresários aplaudem. Porquê?
E as pessoas? As pessoas pelos vistos tentam fazer o que faziam antes. Mandam muitos sms, vão para a neve, mesmo faltando ao trabalho, compram a crédito a televisão. O exemplo de cima é infeliz: em tempo de crise, em que se pede ao povo que tenha compreensão, passam-se férias de quatro dias no estrangeiro!? As pessoas podem passar férias onde quiserem mas pede-se o que não se dá? Assim é fácil: o empresário diz que é preciso fazer sacrifícios numa entrevista ao volante de couro do bólide encomendado com tecnologia Bluetooth a caminho da sua segunda vivenda no Sul. Que custa pedir sacrifícios desta forma?
Falta seriedade intelectual em Portugal. Assumir que a nossa cultura é muito fraca. As pessoas esgotam espectáculos e brinquedos do Noddy como se o jovem tivesse nascido ontem e não há mais de 30 anos e não sabem em absoluto de tal facto. O cinema português é confrangedor, hesitando entre ser intelectual ou mostrar seios (parece que Alice é mesmo bom mas não vi).
Jornalistas, médicos, engenheiros, juízes, professores, enfermeiros, serventes, carpinteiros são todos diferentes. Não se pode legislar para todos de igual forma em busca da inútil obsessão do défice. Quando este estabilizar, a crise irá sempre existir, como a do teatro. Que haja um rosto diferente que o perceba.

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