24 junho 2006

A viagem-I


Reviro-me na cama. Sonho com o voo da águia. Planando sobre as montanhas rochosas. A bater insistentemente com a cabeça na pedra. Sempre a bater na rocha ferida pelo sol do deserto…
Abre a porta, moicano! É o carteiro.
Com dificuldade, acordo. Consigo levantar-me. O cabelo revolto pende sobre os meus olhos. A porta.
Bolas! Mesmo a dormir tens tendência para o melodrama. Está na altura de parares com isso.
Sim. A vida tem de ser mais alegre. Tal como a águia que voa em direcção…
Pára, moicano. Já disse. Este post tem de ser cómico.
Tens razão amigo, digo com um sorriso nos lábios. Carnudos.
Olho para o carteiro e percebo.
Nos lábios. Certo. O que trazes para mim?
Ah, estava a ver que não perguntavas. Parece que te chamam à cidade. Actualização de dados, sabes como é, não sabes?
A cidade. Há muito que lá não vou. Edifícios que rompem o céu, quase invisível. A luz que procuramos e que nos engana num qualquer candeeiro. Ah, desculpa.
Não, até estava a gostar. A cidade também não me atrai. Pelo menos por agora. Vá, assina aqui.
Rabisco o meu nome num aviso.
O carteiro guarda o papel na mochila, despede-se. Parece que vai dizer qualquer coisa mas montando o cavalo desaparece na primeira esquina de tendas.
Venha a cidade.
Como actualizar dados significa tirar fotografias levo o meu melhor traje. Sei que vou ser alvo de todas as atenções mas moicano sou e cada um é como é.
Mãe, aquele senhor, ali junto à bilheteira, é um peru?
Boa, parece que a época migratória chegou mais cedo.
Não ligo e até sorrio para a criança. E como sei que o post tem de ser cómico, enceno uma pequena dança. O puto atira-se para o colo da mãe.
O comboio. A carruagem pára e à minha frente abre-se a porta. Sento-me e o meu mundo começa a ficar para trás. Uma criança de mão dada com um homem na plataforma atira-me um beijo com os dedos. Perco-o no canto do meu olho.
Pela janela desfilam campos, rios e casas. Adormeço com a cara encostada ao vidro. Acordo com um abanar de ombro.
Fim de linha, amigo.
O cheiro. Ausência. Aqui, a terra não cheira. As pessoas não olham. Bem, para mim olham. Terei exagerado nas penas? Que se dane. Vamos aos dados.
Sigo pela rua. Se bem me lembro a repartição é por estes lados. Ao passar por um prédio semi abandonado ouço o que parecem gemidos. Páro. Sim, deve estar alguém no prédio. Entro na amálgama de terra e ferros que se perdem no cimento. Em frente a mim um enorme buraco com água no fundo. Um miúdo olha para dentro e chora.
Nós não queríamos fazer-lhe mal, senhor! Por favor, tire-o dali!
Por todos os deuses, está um homem dentro de água com a cara virada para baixo. Deixo-me escorregar pela terra inclinada e caio dentro da lama que me dá pelos joelhos. Agarro-o pelo tronco e deito-o na terra seca. Está vivo. Viro-o de lado e após algumas pancadas começa a tossir. Olho para cima. Os miúdos miram-nos. Inexpressivos.
Está vivo! O que se passou aqui? O que lhe fizeram?
Fogem. Menos um que em voz baixa atira um desculpa e lágrimas. Desaparece a correr.
Olho para o náufrago.
O homem abre os olhos e mirando-me pergunta:
És um anjo?
Enquanto o som das sirenes da ambulância se perde, sinto-me desconfortável. Tenho calor. Tiro o cocar e as penas malditas que me encharcam o rosto de suor. Deito-o para o chão. A brisa do ar alivia-me. Tenho de seguir o meu caminho. Para a repartição.

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