25 fevereiro 2006

Homens de Negro


O juiz olha para a beca pendurada no cabide. Gabinete vazio. As lágrimas soltam-se. Num impulso dirige-se em direcção ao tecido preto. Agarra-o com as duas mãos. Encosta a face no escuro da saudade. O cheiro. Forte. Másculo.
Passos no corredor. Sair e esconder. Fecha a porta. Naquele instante em que a porta se fecha jura que o vê sorrir na secretária.
Jorge, sabes onde pus a gillette?
Não, Manuel. Caramba, és sempre o mesmo, nunca sabes onde tens nada.
É por isso que me amas.
Sim, mas pelo menos faz a barba.
Por isso é que quero a gillette, da!
Saem do prédio, longe da cidade. Ninguém do meio pode saber. Seria um escândalo, dois juízes homossexuais. Estão no elevador. Que desculpa deste à tua mulher?
Pá, Jorge, começo a não saber que dizer. Disse que ia dormir com um homem e ela riu-se e mandou-me à fava.
Manuel não acha graça.
Estou a brincar. Sabes que isto é muito sério para mim diz Jorge enquanto acaricia o cabelo de Manuel. A porta do elevador abre-se. É a vizinha do 5º andar.
Olá meus amores, mais um dia de trabalho, não é?
Jorge e Manuel abanam a cabeça em sinal afirmativo.
Tão queridos! E tu, Jorge, a pô-los atrás de grades. Vocês são os maiores.
E agora, Jorge, sentado, de preto vestido, ouve as palavras do assistente e lembra-se daquele momento em que Manuel lhe disse, no café, que se ia embora, para os Açores.
Preciso de estar longe de ti. Tu tens mulher, uma filha. E nunca as vais deixar. E, pá, eu não nasci para freira. Passam-se semanas em que não estou contigo. Jorge, meu, não dá.
Manuel, ouve, é muito difícil, eu vivo num dilema permanente. Sabes lá tu, o difícil que é. Quando faço amor com a minha mulher…
Manuel semicerra os olhos em direcção a Jorge e treme de raiva.
Escuta, quando faço amor com a minha mulher às vezes é horrível, só penso em ti e em como tu, em como tu…
Até isso te custa dizer, meu. Não dá, pá, és um maricas!
Pois, se calhar diz Jorge incomodado com a palavra.
Vou para os Açores. Pode ser que olhando o mar encontre definitivamente a minha sexualidade já que tu a recusas. Se quiseres, podes concorrer para lá.
Jorge olha pela montra do café.
Até me posso divorciar mas e a minha filha, como a vejo se vou para os Açores? E haverá algum juiz que me deixe ficar com ela?
Jorge e Manuel olham para o tampo da mesa. Manuel levanta-se e colocando a mão no ombro de Jorge sai pela porta.
Jorge fica estático por uns segundos. Apetecia-lhe correr e abraçá-lo e não mais o largar. Mas o telemóvel toca e desvia o olhar para atender. Ao colocá-lo junto à orelha já não o vê.
E cá estou. A envelhecer e casado com uma mulher que não amo a ouvir quem não me interessa. Resta-me a beca de que te esqueceste e que visto agora. Para sempre.

06 fevereiro 2006

A Festa-II


Sentem-se, diz o moicano. Ainda bem que vieram
Belle e Simão puxam as cadeiras e sentam-se a olhar para os espelhos à sua frente O moicano hesita mas ganha coragem:
AH, a Simone não pôde vir, não?
Belle responde algo secamente.
Não, teve de ir à abertura de uma exposição em Bilbao. Pede desculpa.
Claro (raios!).
Posso começal a selvile?
O moicano olha para o empregado chinês e rosna.
Sim, traga lá uns crepes.
Quantos, senhol?
Quantos?, Não vê? Três. Para já.
Obligado.
O senhor está muito bem.
Muito obrigado. Sinto-me melhor desde que deixei a bengala.
Pois.
O jantar arrasta-se.
Bolas, isto parece o contador do meu blogue. Não anda.
À mesa são seis: moicano, Belle, Simão, inspector João, Strelnikof, Sertório. Qual deles o mais velho.
Depois da banana Fá-Si, o moicano ergue o copo e bate com o mesmo nos dos convidados. Profere algumas palavras.
Estou cansado amigos. Vou despedir-me. Já não faço parte deste conjunto de ideias e cada vez me sinto mais deslocado. Vou partir para outra. Pode ser que às vezes, qual fantasma, apareça mas duvido. A justiça não precisa do que digo. Mas a vocês todos, obrigado e bem hajam por existirem.
Bebe um trago e pede a conta.
Está tudo pago, senhol.
Mas quem pagou?
Não intelessa. Vá em paz.
O moicano veste a gabardine. Está a chover lá fora e não tem guarda-chuva.
Bem, obrigado. E adeus.
Adeus. Volte sempre.
Enquanto o moicano abandona o restaurante, o empregado chinês dirige-se ao W. C., tira os dentes falsos que lhe saíam das gengivas e a peruca de cabelo escorrido. Tony Clifton aparece em todo o seu esplendor.Vai até junto da mesa onde esteve o moicano.
Pobre homem. Esteve aqui sozinho toda a noite.
Vira-se para o espelho, levanta um copo e diz: À tua, moicano! Em seguida, desaparece no reflexo da luz.
O moicano corre pela chuva e esbarra num ombro. Volta-se meio atordoado.
Moicano?
Esta toalha na cabeça. Só pode ser.
Excêntrico?
Sim, pá ouvi dizer que te ias.
Sim, me vou.
Boa sorte. Vou ali à imobiliária. Acho que tenho quem me compre a casa e a mobília.
Boa Sorte.
Adeus.
O moicano corre pela noite. Em direcção à tenda e cada gota que cai no seu corpo apaga a sua existência até nada mais restar que uma poça de água no chão.
FIM.

05 fevereiro 2006

04 fevereiro 2006

G-3


O furriel urina no capim. Antes de cada missão tem de aliviar o saco. Os homens estão sentados numa viatura. Uns escrevem outros lêem. Dois fumam e outros não existem.
Vamos!
Não se esquece de nada meu Furriel?
Nunes olha para o cabo Martins.
Que queres,pá? Por acaso é Natal?
Parabéns, meu furriel! Ou já se esqueceu que faz anos pergunta Martins enquanto tira uma grade de cerveja da viatura.
Não há frango mas há feijões para todos.
O alferes dirige-se para os homens e bebe uns goles de cerveja. Estou velho, pessoal. Vinte e cinco anos. Daqui a pouco sou avô.
Para isso precisa de ser pai primeiro diz um soldado provocando a risada geral.
O Alferes acaba a cerveja e, atirando a garrafa fora, diz:
Está a andar!
O grupo dirige-se para uma sanzala onde tiveram informações que podem escondidos uns terroristas da UPA.
Chegam. Uma ligeira neblina paira no ar. Os PV2 sobrevoam o local. Nas palhotas só mora o silêncio. Os soldados, de G-3 em punho, vasculham-nas uma a uma. O cabo Martins está parado numa delas olhando para o seu interior. Vários pares de olhos fitam-no. Com a mão direita em direcção a esses mesmos olhos e com a arma no braço esquerdo começa a chamá-los a si. Os outros companheiros estão agora ao seu lado, também mudos.
As crianças começam a sair. São mais de uma dezena que saem da palhota. Negros. Troncos nus e lábios grossos. Dois deles trazem bebés ao colo.
Que é isto meu alferes?
Não sei. Mas não gosto.
As crianças ficam paradas num grupo desordenado à espera que alguém lhes diga o que fazer.
O Alferes manda comunicar com a base para mandarem dois helicópteros.
Vamos levá-las.
O pessoal acha bem. Alguns soldados oferecem chocolate ou pegam-lhes às cavalitas.
Queimem tudo.
À medida que voltam pelo trilho o cheiro a queimado começa a desaparecer. Estão quase no ponto de encontro.
Uulalá, UPA, UPA, mata branco.
As balas começam a atravessar os corpos dos soldados. A maioria consegue subir para os helicópteros.
Subam, Subam! Não deixem crianças para trás.
O Alferes ainda não subiu. Nem subirá. Pelo menos para o esqueleto voador. Uma bala certeira perfura-lhe o coração. Enquanto tomba no solo, os homens disparam dentro do helicóptero às cegas para o capim. Os terroristas começam a não recear as balas do branco já fora do alcance e rodeiam o corpo do alferes.
Martins conduz a viatura. No rádio noticia-se a morte de um inspector da Polícia Judiciária. Cabelos brancos e curtos. Óculos na face e um bigode que teima em não cortar. Estaciona o carro e entra no cemitério. No braço esquerdo leva um objecto enrolado num lençol branco. Ao pé da campa, quase anónima, pára.
Parabéns, meu Alferes. Está a ficar velho. Vinte e cinco anos!Desdobra o lençol e olhando para os lados só vê uma velha que lava uma laje. Retira a G-3 e crava-a no solo ao lado da campa. Coladas na G-3 fotografias de adultos de cor negra. Martins fita imóvel o rosto do Alferes e depois vira costas.
Não sei por que me apeteceu escrever isto mas depois de ver alguns sítios e blogues sobre a guerra colonial, resolvi avançar. A fotografia é retirada de um deles cujo nome não retive.

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