28 novembro 2005

Estocada final-II.



25/11/05.
Dia em que encerra o Congresso dos Juízes no Algarve e em que sai notícia sobre a não comunicação de 30% dos juízes que fizeram greve à entidade competente (notícia que o C S. M. ou as respectivas Relações ou a ASJP, se disso fosse caso, têm a obrigação de desmentir). E se isto for verdade, a palavra é VERGONHA!. Olhos no chão para quem não trabalha e recebe. Olhar para o lado para quem não trabalha e recebe como quem trabalhou.
Pode ser que seja mentira a notícia mas temo que não seja pelo menos totalmente falsa (quem leu o blogue Verbo Jurídico em que primeiro se disse que não havia obrigação de comunicar, depois que era melhor comunicar, e leu o que a ASJP escreveu e mandou para os tribunais sobre o assunto e quem sabe o que colegas dizem sobre o assunto e o que Presidentes de Tribunais Superiores também informalmente referem e ainda o que alguns presidentes de tribunais - não aquele onde trabalho que é o maior -, defendiam – NÃO COMUNICO –pode receá-lo).
Adiante. O que os juízes de Círculo de Santa Maria da Feira defendem já perdeu actualidade em termos de comentários. O mundo bloguista parece o mundo tecnológico (não o do Governo, bem emperrado) em que o actual hoje vira obsoleto amanhã. Assim, nesta minha estocada final, pouco direi sobre esse projecto. Direi no entanto que a destrinça entre matéria de facto e de direito poder levar à recusa da petição ou da contestação é de um formalismo exagerado que nos tempos que correm não se pode defender, com muito respeito pela dezena de anos de grande competência do Dr. Joel. Hoje em dia, se tal ideia fosse adiante, quase todas as peças processuais seriam recusadas atenta a enorme dificuldade de os Srs. Advogados, na sua esmagadora maioria (e quando assim não é, nota-se logo, sinal de que são excepções), confundem direito com factos e misturam tudo numa batedeira destruidora da boa compreensão da peça que dificulta a elaboração do saneador. Há que ensinar melhor na Faculdade, na Ordem dos Advogados (que não podem ser sessões de tortura e gozo da ignorância dos licenciados como já ouvi que por vezes sucede) para evitar este mal. Mas a solução não pode ser eliminar a existência essas peças sob pena de por razões formalista, no século XXI, se perderem direitos. Só em casos extremos, como acontece quando não se distingue entre matéria de impugnação e de excepção é que deve haver sanção (e nestes caso defendo que uma das sanções possíveis é considerar a matéria de excepção impugnada mesmo que o Autor nada tenha dito pois pode nem sequer se ter apercebido da mesma).
No mais, em processo civil, com excepção do aumento do valor das alçadas tout court com que não concordo, são boas ideias.
Em processo penal, quiçá para se afirmar que se tem de obedecer ao Tribunal Constitucional, afirma-se que se deve comunicar ao arguido com precisão os factos que lhe são imputados. C’os diabos, toda a gente sabe que esta questão só surgiu por que um pseudo poderoso foi preso preventivamente. Até lá, alguém tinha ouvido falar disto? E haveria assim tantos juízes a nada dizerem, de forma kafkiana, ao arguido por que estavam ali detidos? Deixem-se de rodrigos (homenagem ao Congresso): tem que se cumprir a lei que já diz que se deve comunicar ao arguido os factos que geram a imputação e na conversa, use-se o bom senso (o arguido terá sempre oportunidade de se defender do que lhe dizem mesmo sem saber os nomes de quem o acusa; se não fez, se estava noutro local, alguma prova há-de ter; e se não tem, pode pedir diligências de prova no inquérito para afastar os indícios. E isto sempre na suposição que nenhum juiz decreta a prisão preventiva sem a existência de indícios fortes para tal).
No mais, transcritos ou não os depoimentos, com maior ou menor oportunidade processual, as medidas são basicamente as que vêm sendo defendidas por quase todos, eu incluído, ainda que nos quentes meses de Agosto e Setembro.
Agora a ponta da estocada. Acabei de ouvir o Presidente da ASJP (13.06 horas) a tentar justificar a não comunicação das faltas dos magistrados grevistas. Confuso, falou em entidades processadoras de vencimento com atraso mas não é isso que está em causa. Pode ser que melhor documentado fale com mais sapiência,
E por falar em sapiência, então o Presidente da República agora está do nosso lado?! Será por que está a acabar o mandato e vai voltar a receber SÓ (ironia) os seus rendimentos da sociedade de advogados? Já terá sentido algum problema? Ou quando vai a casa de terceiros muda de pele? Falso, é uma falsidade atroz antes dizer que todos sem excepção têm que colaborar com o esforço de Portugal para ser melhor e agora dizer que concorda com os juízes.
Mas há alguns ventos de mudança; não, não são aqueles da horrível música dos Scorpions. São aqueles ventos que começando numa ligeira brisa acabam por derrubar a roupa que seca no estendal se antes não for tirada da corda. Já se mostram tribunais sem condições de trabalho, já se refere que os juízes têm de ser bem tratados, o espectro da república dos juízes paira sobre os políticos, há quem por uma vez diz que se tem razão. É preciso calma. Pode ser que no futuro se conclua que a retirada arbitrária das férias só vai trazer prejuízos (como se vão organizar os turnos é algo que vai ser curioso seguir nomeadamente nas discussões entre colegas).
26/11/05.
O Congresso acabou com um discurso poderoso do presidente da ASJP. Gostei da encomenda de manchetes. Embrulhem e habituem-se. Os ventos de mudança também sopram do lado da associação. Já não há medo em falar e em se ser apelidado de bruto ou de ser de pântano. Atacaram os juízes sem piedade; responda-se na mesma moeda. O silêncio aplicado ao Ministro foi suficientemente sonoro. Claro, o homem já deve ter na manga outras boas medidas para os juízes mas estes não podem ser pêra doce. E parece-me que este discurso e a atitude dos juízes no Congresso deu melhores resultados que a greve mas admito que possa ter sido uma alavanca para se olhar para os juízes de outra forma.
E agora? Sempre presente que os juízes não podem defender medidas que só visem tirar-lhe o trabalho, sejam eles de círculo ou de comarca. Há que reconhecer, custe o que custar, que há muita coisa mal. Exemplos: por que motivo se recebe subsídio de renda se não se vive na comarca, se vive em casa própria? Há que procurar integrar esse dinheiro no salário que já é para evitar mais ataques. É preciso estar muito atento á prometida organização judiciária e ver para além dos números. É preciso que os juízes deixem os lugares do poder. E a formação de juízes tem que ser melhor. É aqui que tudo começa. Foi por aí que eu comecei no Verão. Sem uma boa base não há fiel que não balance. E por isso sinto que os blogues de juízes vão começar a ter de, pelo menos, divergir nos seus assuntos sob pena de se tornarem monótonos. Há quem o faça melhor que eu e por isso força rapazes. Por isso vou começar a dedicar-me mais a escrever umas histórias (Belles e afins) e muito ocasionalmente, quando a cotovia cantar e a Julieta estiver à espera, subo a varanda e discurso um pouco.
Gostaria de deixar uns abraços: a Paço Bandeira que diz serem os seus actores de eleição Meryl Streep e Carlos Cruz (revista Flash ou Lux); ao excêntrico, que revela um enorme fair-play (power of encaixe) e a quem agradeço as simpáticas palavras. Ao expresso que se cita a si próprio como tendo sido referido numa missa (sobre transformação de pêras em compotas). Ao filme «O Fiel Jardineiro» e a todos os que atacam a contida interpretação de Ralph Fiennes (é sempre melhor ver Vítor Norte com cara de mau).
Em próximo post: Belle.

22 novembro 2005

Take it on the chin


Batem à tenda. Vou ver. Quem é?
O preto que quer café!
??? Mas que raios…
Abro a tenda. Quem és tu?
Venho da parte do meu amo, Mr. Sammy Davis. Toma.
Obrigado. E o café?
Não quero. Este não é o meu blogue.
Leio a carta. «É para o informar que vai começar a guerra.???
F***-se. Que m*****” é esta? E por que estou a falar à excêntrico?
Saio da tenda sem saber por que o Sammy Davis me manda um moço de recados.
Ao longe, uma nuvem de fumo na pradaria. Mais búfalos? Ah, não! É um ataque! Estou a ser atacado no meu blogue! Quem é este que vem aí? É uma mulher! Mas que está ela a fazer? A dançar?!
Mirondum mirondúm, mirondela, Mirondúm se fué a la guerra, no sé cuando vendra, no sé se vendrá o vendrá por la pascua, Se por la eternidad, se por la eternidad.
É a trauliteira! Vou ter de usar de toda a minha argúcia para fugir aos paus e ao jogo de pés desta lenda.
Trauliteira usa os pés para levantar a poeira e assim cegar os inimigos enquanto bate com os paus um no outro provocando um som aterrorizante. Mas o moicano tem armas secretas.
Invoco o Deus da Ventania para afastar esta poeira. E o Deus do Trovão para que os paus se transforme em archotes.
Meu dito, meu feito. O vento afasta a poeira e os paus começam a arder. Trauliteira pára e vendo-se sozinha e sem armas, começa a fazer malabarismos com os paus enquanto desaparece no horizonte.
Esta já está. Mas há mais. Quem será agora?
Já dizia Chesterton, a mediocridade, possivelmente, consiste em se estar diante da grandeza e não se reparar nisso.
Este vai ser mais difícil. Por detrás de palavras cândidas esconde-se um grande guerreiro.
O moicano dirige-se à tenda e pega no cachimbo que costuma estar escondido atrás da sanita. Começa a fumar enquanto os Led Zeppelin tocam Stairway to Heaven. Boa!
Sai da tenda. O homem das citações ideais está em pose de safio com o queixo levantado e o sobrolho esquerdo levantado. Ora cá vai: os cemitérios estão cheios de gente insubstituível! (Churchill); ironia é a esperteza de um coração superficial (T. H. Lawrence); liberdade signfica nada mais a perder (Lynne Schwartz); todos os actos de injustiça parecem aumentados aos olhos da vítima (Hilary Mantal); não chores por não ver o sol que as lágrimas não te deixaraão ver as estrelas (Violet Parra); índio de cachimbo, idealista no limbo (local).
O homem das citações está perplexo. Não estava à espera da sabedoria milenar do índio (mal sabe que o efeito da erva está a passar). Resolve apelar ao último truque. Pega no walkie-talkie com desenhos do Power Rangers e diz: podes chegar cá? Ès a minha salvação. E a menina das nutícias aparece em todo o seu esplendor. Começa a vestir-se enquanto o moicano arregala os olhos. Nunca conseguiu resistir a uma mulher vestida. Que fazer?
Já sei. Como mulher de grande nível, não deve gostar de piropos foleiros. Vamos lá. Ó jeitosa, tens aí um cocar todo bom! Já agora, esse teu escalpe ficava bem na minha mesinha de cabeceira! As tuas amigas têm nome? Conheço um solitário para ti!
A menina das nuticias começa a chorar e desvanece-se no ar. Vai quote man. Vai e quando vieres ao menos traz gente de nível.
O homem das citações vai-se embora de cabeça baixa enquanto cita o adeus de Eu Génio de Andrade.
Isto está a correr bem. Mas, já sabia, o sossego tinha de acabar. Quem é agora? Bem, aquela toalha na cabeça, é ele, o excêntrico. Com que então ele era só ratos. Hmm! Agora é mesmo luta.
O excêntrico chega e diz ao moicano para esperar que está ao telefone com o Dr. Cuca. Desliga o telemóvel. Olá moicano. Preparado?
Sempre.
A luta inicia-se. O excêntrico usa todas as suas armas; código administrativo anotado, código de procedimento administrativo anotado, livro de Freitas do Amaral. O moicano, no ar e rodopiando sobre si, evita todos os golpes do excêntrico. Uma hora depois, esgotados, olham-se de frente. O excêntrico sorri enquanto diz: tenha a minha carta secreta. De hoje não passas; e saca de uma decisão do tribunal que lhe permite auferir como juiz após estágio. O moicano arregala os olhos e vendo toda a vida passar à sua frente (querida mãe, que saudade do cheiro do teu longo cabelo negro) num último instante lança a mão ao saco de cabedal que sempre o acompanha e lança um despacho das finanças a congelar o pagamento desse salário. O excêntrico fica petrificado e cai no solo. A custo agarra no telemóvel e fala com o Dr. Cuca: preciso de uma consulta de emergência, Dr., Tou que não posso! E aqui não há casa de banho e estou prostrado no chão. C******, ajude-meee! E vai-se para a sua jurisdição administrativa enrolando a tolha à volta da cintura.
Foi difícil mas eu, O MOICANO pode com todos!! Opa, isto agora é grande.
Um exército de 68.988 soldados parta em frente do moicano. A comandar esses 69.180 soldados um único homem a cavalo. Numa mão uma lança e noutra uma bíblia, anotado por ele próprio. Os 70,132 soldados apontam as lanças ao moicano que engole em seco.
É ele, O BLOGGER.
Então, preparado para te renderes, ó índio traidor da classe?
Nunca me rendo. Já agora, não queres descer do cavalo. Quero falar contigo ao mesmo nível.
O BLOGGER hesita.
Descer do cavalo? Para quê? A tua morte é iminente! Deixa-te de gabarolices parolas!
Ó chefe, era capaz de ser uma boa. Nunca o vimos sem estar no cavalo. Os 76.433 abanam afirmativamente com a cabeça num movimento algo mareado.
O BLOGGER não quer acreditar: os seus homens apoiam o moicano. Vou ter de descer senão chamam-me de herege. O BLOGGER desce do cavalo.
É o silêncio total. Os 50.321 homens não querem acreditar. Só se vê um tufo de cabelo dentro de um manto preto e dois grossos livros. O BLOGGER é minúsculo. Os 2 soldados largam as lanças e fogem gritando Mentira, Heresia.
O moicano agarra no manto preto e com um espirro introduzi um vírus no blogue que desaparece no firmamento.
Ah! AH! AAAHHH! I’m the greatest!
O moicano acorda de repente. Meu santo Touro Sentado. Tive outro sonho de soberba e imodéstia. Tenho de inflingir sofrimento nestes magníficos bícepes, digo, neste pequeno corpo.
O moicano dirige-se à tenda e toca à campainha. Uma magnólia resplandesce ao sol enquanto uma gata procura companhia.
Sim?
Mulher de Grandes Seios e Braços Voluptuosos, sou eu, o moicano. Preciso que me faças sofrer como naquele filme do Fellini, L’armacord em que o rapaz quase sufocava.
Mulher de Grandes Seios e Braços Voluptuosos abre a tenda. Não tenho isso mas arranja-se um Pasolini. Talvez os últimos dias de Sodoma. Aceitas?
O Moicano aceita o castigo. Que lhe sirva de lição.

Qualquer semelhança com a realidade é pura realidade.

21 novembro 2005

Belle-V


Ora bem, pratos, talheres, copos de água e vinho (Simone gosta mais de cerveja mas hoje tenho aí um vinho para ocasiões especiais), tostas, paté e guardanapos de pano.
Belle inspecciona a mesa com os lábios ligeiramente para a frente e com dois dedos da mão direita a tocar-lhes. Há muito tempo que não vê Simone, a sua colega de liceu que nunca mais deixou de contactar ainda que não esteja com ela tanto como gostaria. Simone é arquitecta, escultora e loira. Nem sempre por esta ordem mas sempre juntas. Enquanto Belle estava no Centro de Estudos Judiciários privaram bastante tempo. Iam ao cinema, teatro, exposições, umas vezes com o Pedro, outras não. Belle nunca percebeu muito bem se Simone gostava do Pedro mas no fundo pensava que havia ali uma mescla de amizade e ciúmes.
Belle vai à janela e vê o Fiat Barchetta a estacionar. A porta do lado esquerdo abre-se e uma cabeleira loira avança em direcção ao prédio enquanto as luzes amarelas do descapotável piscam.
Viva, morenaça. Estás em grande forma! Tens de me dar a receita para essa juventude.
Como sempre, Simone é a elegância. Um blusão branco forrado de pele, cabelo cortado irregularmente e esticado, olhos realçados a negro.
Que mesa espectacular! Sim senhora, a juíza sabe receber. Pára junto á mesa. Olha para Belle e abrindo os braços, abraçam-se.
Desculpa não ter ido ao funeral. Estava no Guggenheim e não deu.
Belle sabe que Simone não suporta funerais. Não percebe a finalidade da coisa. Se a vida são dois dias, por quê desperdiçar um usando o preto que abomina?
Vamos, senta-te. Temos tanto para conversar.
Claro. Por acaso não tens…
Cerveja. É para já.
Beberam o vinho, conversaram enquanto ouviam música que saía da alta fidelidade e calavam-se.
Já passaram quase dez anos, Belle. Lá por que te vestes de preto durante o dia, não quer dizer que sejas uma freira. Não apareceu ninguém?
Houve algumas pessoas mas, tu sabes, não é fácil. Às vezes penso que estou sempre errada, espero ouvir o que nunca me dizem, quero sentir o que só eles sentem e conversar o que só converso contigo.
Simone sorri. Levanta-se e com o cigarro na mão esquerda, volta a cabeça em direcção a Belle.
Não há pessoa como tu Belle. Disso eu tenho a certeza. Vem para Lisboa. Deixa esta parvónia e trabalha mais perto de mim.
Volta a olhar para a janela. O mundo lá fora está desfocado. Simone sabe que não pode ir muito mais longe. O coração bate apressadamente. Deve ser do vinho.
Belle sorri. Esta relação ambígua irritava o Pedro que citava sempre a mesma rase de um filme de Woody Allen em que Meryl Streep o trocava por uma mulher. Nada disso. Não da sua parte. A vida de Simone dava um filme. Namorou actores, políticos, casou com um advogado, divorciou-se, abortou quando caiu do cimo de bloco de mármore frio e liso e agora é adida cultural nos Estados Unidos. Tem um apartamento em Lisboa onde passa cerca de cinco meses por ano. E aqui está ela a pedir-me para ir viver para perto de si.
Mas tu agora és mais americana que portuguesa! Que vou eu fazer para Lisboa? Concorre para um tribunal Criminal onde ainda apanho políticos e pedófilos para julgar? Estou bem aqui (acho).
It´s your life. Bah, isto está a ficar demasiado sério. Que dizes, vamos sair? Vá, mostra-me onde é que os campónios se divertem.
Agarra na bolsa e saem para o elevador. Entram no bólide amarelo e disparam em direcção à ponte. Do outro lado a noite está iluminada. Enquanto as luzes se reflectem no vidro, a ideia de voltar para Lisboa não lhe sai da cabeça. A seu lado o rio dorme tranquilo. Talvez.
Chefe, acho que apanhamos o homem. É para o seguir?
Sim, vá para onde for. Já temos os mandados.
O homem que se dizia chamar Rogério apanha um táxi em direcção ao aeroporto. O Renault 11 arranca conduzido pelo inspector João.

Em próximo post: estocada final-II.

18 novembro 2005

Estocada final-I



Não sei se será uma das últimas vezes que escreverei sobre o mundo das leis mas um texto do excêntrico (não a parte de mijar de pé) mas sobre o ataque do touro antes da estocada final (coup de grace) inspirou-me a desejar escrever sobre algo final. E como, finalmente, se começam a dar, por escrito, sugestões sobre como se pode melhorar isto, talvez me dedique só às Belles, Tonys e Paulo (que não deve ter deixado saudades mas que como gostei do que escrevi, voltará, apesar de ter morrido – this blog is moicano´s land!).
Li as ideias do Dr. Joel. Ainda me lembro do tempo do tribunal de círculo de Santa Maria da Feira, sem Espinho. E posso garantir que tinha pouco trabalho, mesmo muito pouco enquanto os juízes, por exemplo dos cíveis, trabalhavam até ao limite. Mas os tempos mudam e porventura, há que admitir que ficam com mais trabalho se se criarem agora tribunais de círculo. Mas não é por aí. Desde logo o poder político ignora tais questões. È que extinguiram o tribunal de círculo de Santa Maria da Feira que funcionava muito bem e criaram os juízes de círculo. Resultado: lá vieram processos para a comarca fazer os saneadores. Não sei se em Santa Maria da Feira eram muitos ou poucos mas eles existiam. Resultado: a comarca passou a ter de tramitar todos os processos novos que antes não tramitava além dos antigos que havia que dar andamento e em que o Sr. Inspector, avidamente, ia logo averiguar se tinham sido despachados rapidamente. E outros resultados houveram: a comarca passou a ter muito mais trabalho, só aliviado quando se eliminou quase por completo a possibilidade de julgamentos colectivos em processo civil. E aqui o legislador, em vez de extinguir claramente tal situação, preferiu redigir uma norma algo escondida em que exigia o requerimento da intervenção do tribunal colectivo pelos advogados (e nos corredores os juízes comentavam que como os advogados não sabiam que assim era, não havia colectivos).
Mas, voltando ao texto do Sr. Dr. Joel. Podendo dar-se como certo que irão ter mais algum trabalho, pergunto: isso é motivo para abrirem um manifesto opondo-se à criação de Varas? Na sua perspectiva e muito meritória sim e percebe-se: se não formos nós a pensarmos nos nossos interesses, está visto que mais ninguém o faz. MAS, acima disso está a justiça. E aqui uso uma resposta do Sr. Dr. Juiz Vítor Sequinho que no seu monte me respondeu que não há juízes de comarca e de círculo mas sim juízes a pugnarem por melhor justiça. Hélas que as medidas que ele e o os juízes de círculo de Santa Maria da Feira apresentaram desde logo fossem a de que tivessem menos julgamentos (O Meu Monte) e que para pior já basta assim (Verbo Jurídico). Sei que cada um fala do que sabe e como sabe e quem não pode e não sabe não fala. Mas convenhamos, será pela criação de Varas que tudo piorará? Penso que não. In Illo Tempore, quando estava a acabar de montar a minha tenda, escrevi sobre a especialização e defendia-a. Continuo a defendê-la. A criação de Varas especializadas (crime, cível), com tribunais especializados (família, menores, estes separados daqueles se possível e a pendência o justificar, instrução, tribunais de execução e de comércio bem como julgados de paz, estes de cariz obrigatório o que, para mim, ao contrário da opinião do Dr. Joel, ainda não o têm, sendo certo que há tribunais superiores que o citam nesse sentido) instala uma rede de tribunais que permitirá desde logo e é isso que interessa acima de tudo que haja uma melhor justiça. Estou só a falar em termos de haver ou não Varas já que isto não é a vara de condão que tudo resolve. Mas a sua criação, especializada, com mais três juízes criaria um corpo de juízes especializados e que penso que não iriam ficar afogados com processos (mas posso estar muito errado mas concedam-me a oportunidade de os outros também poderem estar). Agora não estarão afogados em processos pois segundo o que poso saber até há hipótese de um dos juízes acumular serviço parcialmente com um dos juízes de uma das comarcas que compõe o círculo de Santa Maria da Feira, só o podendo fazer quem tem tempo para tal. E compreende-se. O juiz de círculo só faz a nobre função de julgar, não se preocupando com a mixórdia que invade a comarca. É verdade. Agora o juiz de comarca ainda tem de se preocupar por que é que outros (solicitadores de execução) não dão andamento à execução ou por que não respondem aos pedidos de informação do tribunal, durante um ano ou mais. Mas, e volto fazê-lo (terceira vez, se bem me lembro), a comarca cada vez mais se preocupa com nobres funções de julgar que vão sendo retiradas aos juízes de círculo – julgamentos em execuções de valor superior à alçada da Relação, procedimentos cautelares acima desse valor, reclamações de créditos acima desse valor, havendo muitas contestadas e bem complicadas, julgamentos em acções de insolvência, e fazem religiosamente os seus turnos -. Nada me move contra os juízes de círculo nutrindo admiração por muitos com quem trabalho e trabalhei; mas isto não é pessoal, é objectivo. Existem diferenças que não consigo explicar, e não só entre juiz de comarca e de círculo mas entre este e o juiz de uma Vara (equiparado a juiz de círculo nas palavras do Sr. Juiz Vítor Sequinho): é que este, ao contrário daquele, tem procedimentos cautelares e faz turno. Como pode ser isto? Tem de ser alterado por forma que todos os juízes façam turno – há juízes e procuradores no Porto com mais de 20 anos de carreira e lá vão eles, aos Sábados (e antes aos Domingos também) fazer o seu turninho e um juiz de círculo nunca o terá de fazer. Acho injusto mas já sei que não devo ter poder de encaixe.
Problema sério é o das instalações mas sempre o será neste País miserável em que há pessoas que pensam que pagando pouco e exigindo muito se vai para a frente. Mas aí, não me compete dar soluções já que não sou ministro nem secretário de estado nem o quero ser. Aliás este é um problema que se me afigura bem grave: o de haver juízes que gostam e querem ser políticos. Confesso: quando vi o Dr. Fernando Negrão a dar beijinhos a crianças, pegando-lhes ao colo numa recente campanha eleitoral, fiquei triste. Aquele homem era infeliz a julgar, não era aquela a sua profissão; e também fiquei triste por que não é assim que vejo um juiz como já referi num «Ser juiz» que o excêntrico criticou e eu nada respondi. Foi e é mau. Juízes existem para julgar e se deixar de haver interferências entre um poder e outro, o poder político não tem por onde pegar a um juiz que nunca falou com um político num corredor do Parlamento, num bar de Lisboa ou num bom restaurante com vista para o Tejo. Assim, desculpem lá, mas há sempre alguém que diz sim, sempre alguém que cede aos seus rígidos deveres por que num dia facilitou num despacho ministerial ou passou informação ou deixou que lhe pusessem um cachecol dobrado no pescoço e vai abraçar amigos políticos.
Quanto às restantes propostas do Dr. Joel e colegas, efectivos, auxiliares ou da bolsa, whatever, no próximo post direi algo mas só em relação às alçadas. Lá está, subam-se as alçadas e mais uma vez o juiz da comarca cada vez tem mais processos. Concordo com mudança se for acompanhada de criação de Varas; de outro modo, o juiz da comarca passa a ter mais do que tinha além dos processos de juiz de círculo que depois os recebe para julgamento. Garanto: se essa subida de alçada não for acompanhada da criação de Varas, vai haver muitos juízes de círculo, se a orgânica dessas comarcas não for alterada, a visitarem o tribunal de comarca para almoçar. Mentira! Ignomínia! Invejoso! Não, é verdade. Com uma excepção que também já tratei no tempo dos mitos neste blogue: quando vêm processos volumosos, tudo se complica e atrasa mas aí defendi a criação de tribunais centrais especializados para esses crimes mais complexos em diversas regiões do País mas aqui I’m repeating myself.
Esta foi a última estocada parte I.
Belle voltará e o Paulo também.

17 novembro 2005

Belle-IV


O ancião que está à sua frente tem as lágrimas a escorrer pelo rosto. Belle volta a perguntar.
Explique-me por que motivo insiste em permanecer no Lar quando tem uma casa onde pode viver com todo o conforto, tem filhos que estão dispostos a ajudá-lo e persistentemente maltrata a sua mulher?
Está a ser muito difícil adaptar-me a esta situaçãom Srª Doutora. Eu falo com ela e quando me esqueço de quem ela já não é, começa aos berros e a gritar pelo enfermeiro a dizer que está um estranho no quarto. Mas viver sozinho em casa ainda me deixa pior. Eu sei que faço mal e que não lhe devia gritar…
E bater. De acordo com o que aqui diz o senhor chegou a bater-lhe uma vez antes do jantar à frente de diversas pessoas.
Isso não é bem verdade. Eu ia bater-lhe mas não cheguei a fazê-lo.
Belle suspira. Para ela já chega. Ainda faltam cinco testemunhas e outros tantos processos para acabar a manhã de julgamentos.
Ao sair, bem depois da hora de almoço, senta-se, reclina-se na cadeira e com o comando liga a aparelhagem. Michael Stipe proclama que sometimes everything is wrong. Fecha os olhos. E sozinha, nesta vida, quando pensa que já se viveu demais, agarra-se. Ao pai. Tinha uma calma olímpica. Alto, elegante com uma barriguinha que mal se percebia por debaixo da camisola. Advogado de província. Defendeu ricos e pobres. Adorava o que fazia. Levantava-se cedo e quando tinha julgamentos pedia ao funcionário para o deixar entrar na sala e sentar-se na bancada reservada aos advogados para poder espalhar os papéis. Belle não consegue evitar um sorriso ao ver a desarrumação do seu pai na sua mesa. Só uma vez o viu em julgamento. O pai nunca soube. O caso gerou ansiedade na população. Marco era cigano. Todos o conheciam de vender bugigangas, casacos e alguns rádios de pilhas. Nunca ninguém o tinha visto em qualquer tipo de problemas tirando os casacos que na primeira lavagem começavam a desfiar. Mas naquele dia houve quem o tivesse visto a falar com a Dona Antónia na estrada a gesticular muito enquanto a senhora abanava com a cabeça. Nessa mesma noite, após longas horas de buscas, D. Antónia foi encontrada dentro de um poço sem vida. A autópsia revelou que morreu de uma pancada na cabeça provavelmente ocorrida na parede do próprio poço.
Marco foi preso no segundo dia após a morte. A polícia valeu-se dos depoimentos de duas senhoras que juraram que o viram a discutir com a D. Antónia mas como iam com pressa para o campo não disseram nada na altura.
O pai de Belle olhava a sala cheia enquanto traziam Marco. Tinha emagrecido notoriamente. E Belle, na última fila, escondida atrás de um corpulento camponês viu quase tudo e ouviu tudo. E viu o pai a levantar-se e a falar. Falou pouco tempo. Lembra-se que terá dito que não havia provas presenciais e que as circunstâncias não podem condenar ninguém e que restava aos juízes cumprirem a sua missão. Lembra-se também de o pai lhe ter dito, dias depois, que o Marco tinha sido condenado. E também se lembra de enquanto o pai lhe mostrava um novo livro de histórias, nas escadas que davam para o jardim, um funcionário do tribunal, seu amigo, lhe dizer que Marco se tinha suicidado na cadeia. O pai levantou-se e fazendo uma festa no cabelo da Belle, entrou para dentro de casa sem dizer uma palavra.
Belle lembra-se de tudo isto. O pai não.
A noite fica bem a Belle. Com o cabelo puxado em rabo-de-cavalo e com um cachecol que realça a sua face branca, entra no edifício. Vê a mãe e dá-lhe um beijo. Como é que ele está? Bem, responde a mãe. Já sabes por que está à tua espera.
Sim. Quando Belle vem jantar com o pai ao Lar, ele faz questão de vestir o fato. Mas tem de ser a Belle a pôr-lhe a gravata por que só ela sabe fazer o melhor dos nós. Belle sabe que o pai acha que está a jantar com a sua mãe. Mas não importa. A memória esquecida do pai quase se esfuma perante a alegria com que olha para Belle. Lá está ele, sentado numa cadeira, impecavelmente vestido e com uma gravata na mão.
Olá.
Vou ler com muita atenção as sugestões do Dr. Joel sobre a não extinção de juízes de círculo e consequente criação de varas.

14 novembro 2005

Sonho


António sai a correr do prédio que o abriga durante todo o dia e procura a paragem de autocarro enquanto a chuva cai copiosamente sobre a sua nova gabardine. É o último dia do mês e passou o dia a arquivar inquéritos e deduzir acusações a tempo da estatística estar pronta. Chega ofegante à pequena barraca de vidro e começa a espera. Está frio. O ar sai-lhe condensado pela boca. Um automóvel ao virar numa rua faz incidir a luz dos faróis nos olhos e reflexamente vira-se de costas. Fica de frente para o vidro deste outro abrigo e não pode evitar: vê a sua imagem. Está cansado. E sem saber por quê, lembra-se da história da menina e do outro lado do espelho. Como seria a vida do lado de lá do vidro?
António sai com um grupo de colegas amigos do prédio ultra moderno. O sol brilha e as pessoas correm na azáfama das compras. Resolvem ir tomar um copo enquanto telefonam às mulheres e lhes dizem um amo-te sem as deixarem falar. No outro lado da cidade os meninos e meninas de uma escola vivem uma aula de poesia nos campos verdes do parque. O professor cita as palavras sobre rios e vales enquantos os olhos das crianças reflectem o seu vulto desenhado na neblina do entardecer. Noutro País, umas freiras pedalam freneticamente nas suas bicicletas em calças e camisas informais querendo chegar depressa à missa que a madre já pode celebrar. No deserto, de um poço há muito julgado seco começa a correr um pequeno e translúcido fio de água. No Brasil, o índio e o homem branco plantam mais um árvore. Na mesquita, o judeu e o árabe abraçam-se enquanto na televisão os governantes assinam o Tratado de Paz. Em África o miúdo sorri enquanto o médico aprova o seu peso. Na Índia as pessoas visitam o museu onde existe uma recordação do riquexó. Um padre ao ouvir a confissão de uma mulher que abortou afasta a cortina e abraça-a. No espaço, um russo descobre uma falha que se julga ser o outro lado do Universo. Uma pequena racha no vidro que distorce a visão de António que ao lhe tocar o puxa para o lado de cá. O autocarro chega. Lá dentro o ar está abafado. As pessoas acotovelam-se e pisam-se. A porta fecha-se. Ainda consegue ver por entre a chuva a mãe negra pegar ao colo o filho que encostando a cabeça no seu ombro sorri para António. O contentor de pessoas arranca.
Um pequeno momento de alegria e sonho. Bolas, perdão. Todos temos dias maus. O deus do trovão esteve muito tempo comigo.

13 novembro 2005

outsiders




Sempre gostei de histórias de outsiders. São heróis incompreendidos mas que curiosamente a maioria venera. Por exemplo, o jovem aqui do lado, Serpico. Atacado pelas chefias, pelos colegas que procuravam melhores rendimentos praticando crimes, pelos criminosos e ignorado pela população que não fazia a mínima ideia que existia. Resultado: baleado quase até á morte. Mas o filme e a série foram enormes sucessos.
Columbo. Um ser baixo, mal vestido, mal falante, incompreendido pelas chefias que nunca o terão promovido (tenente) mas que sempre de forma brilhante descobria o crime e o criminoso. Resultado: uma série de culto com direito a imagem desenhada do protagonista na revista Time.
Como outsider era o The Insider. Um único homem colocou em crise a indústria tabaqueira de Philip Morris. Despedido, dando aulas a um preço muitas vezes inferior ao seu valor científico, divorciou-se. Resultado: entrevista histórica no 60 minutes e um filme de grande sucesso, pelo menos na crítica.
Michael Moore. Procura fazer as perguntas mais incómodas mas básicas possíveis a poderosos ou ilustres conhecidos, quase sempre apenas com um ou dois operadores de câmara. Resultado: documentários poderosos que abalaram muitas consciências.
A que se devem tais sucessos? Além de serem filmes ou séries bem feitas, existe sempre dentro de nós um sentimento de gostar de ver o pequeno vencer o grande, do aparentemente fraco destronar o supostamente invencível. São vários os casos, estrangeiros, de vitórias de cidadãos contra poderosas multinacionais (nos Estados Unidos há muitos casos que até deram filmes). Gostamos sempre de ver um negro provar a sua inocência contra um tribunal branco e racista. Não é só o sentimento de justiça pois este, para as pessoas, pode ter noções diferentes. E tem muitas vezes: basta que se tenha a pele de Autor ou Réu. A parcialidade sobreleva-se à justiça em cada um. É antes a vontade de pelo menos alguma vez o forte perder.
E na nossa justiça e em Portugal? Gostava que houvesse alguém que pudesse agitar qualificadamente o powers that be. E não evitando alvos incómodos ou menos fáceis mas procurando acertar com a flecha no alvo (a minha natureza de moicano assim o obriga). Ora, confesso que não tenho capacidade para encontrar essa pessoa. E agora vou desabafar e depois estou na minha tenda á espera de alguém para fumar o cachimbo. Quer nos meus posts quer nos meus comentários em outros blogues tenho, ao que penso, manifestado uma opinião contra a corrente nomeadamente não dando toda a razão aos juízes. Resultado: há blogues que ostensivamente não incluem nos seus links o primeiro moicano mas que até já me citaram mas não gostam do moicano. Há outros que nem me citam nem me incluem mas procuram sempre criticar-me. E há ainda aqueles que me ignoram pura e simplesmente. Há no entanto Magnólia, uma gata e alguns outros que são boas pessoas e me vão aceitando com estes meus defeitos. Mas pergunto: o mundo dos blogues de juízes não estará a começar a esgotar-se e a copiar-se? Quase todos se citam uns aos outros. Chega a suceder que os próprios autores do blogue comentam, favoravelmente, claro, o que o outro companheiro bloguista escreveu. Será este o caminho? Penso que não. Que resultados práticos tem havido? Suponhamos o máximo possível até ao momento: Verbo Jurídico conseguiu que O Independente publicasse a história de Macau do ministro da justiça. So what? O homem continua na sua senda e inabalável, pelo menos através do seu secretário de estado como o Verbo Jurídico relata no blogue. No fundo, anda tudo a dizer o mesmo vezes e vezes e vezes sem conta numa táctica do tanto bate até que fura.
Mas e os outsiders? É que os hits ou visitas dos blogues inside são altos. Não há? E como poderiam ser? Não sei. Talvez um tipo teoria da conspiração. Por exemplo: não façam greve agora que talvez um próximo governo seja melhor. Resultado: convite para alto cargo político. Ou: banca em investigação. Resultado: taxas de juros em Portugal vão subir. Banca recebe sempre tratamento mais favorável. Resultado: auxílio no controlo da despesa pública pelo B. C. P.. Militares descontentes: catadupa de promoções. Media a favor do governo? Orçamento para a R. T. P. é astronómico além de estarem luxuosamente instalados. Ou então uma táctica de guerrilha: há juízes que acham que mentir em processo civil não é crime (Dr. Marinho, Expresso 12/11/05)? Mas há advogados que pedem condenação em multa e indemnização por litigância de má-fé logo na petição inicial.
Não sei. Mas escrever sobre impressoras, salas pequenas, já não chega. Em tempos duros, há que ser duro, inflexível na aplicação da lei, sem concessões, procurando que a imprensa comece a virar costas ao Governo, o que mais tarde ou mais cedo vai acontecer pois não há governos democráticos eternos. Os dirigentes sindicais têm que saber fazê-lo. Aos poucos, atacarem as fragilidades de conhecimento do Ministro (Dr. Cluny procurou fazê-lo em relação aos crimes de homicídio sem investigação) e dos seus comparsas, juiz administrativo incluído. Mas tem de ser mais alto. E sem medo. De frente. Educadamente. E os juízes são capazes de o fazer: vejam as críticas de Pedro e Anita a um meu post. Arrasadoras.
Em próximo post: alegria.

09 novembro 2005

Belle-III




Pelo exposto vai a arguida Amélia dos Santos Pereira condenada na pena de multa de 120 dias, á taxa diária de € 3,00 no total de € 360,00. Mais vai condenada a arguida nas custas do processo com o mínimo de taxa de justiça,…
Belle agrupa as folhas da sentença e coloca-as no interior do processo. Percebeu D. Amélia? Mais ou menos. Tenho de pagar a execução não é?
Belle resume oralmente o que acabou de escrever e sai da sala com a sensação que precisava de duas horas para lhe explicar por que tinha sido condenada. São 16.10 horas e o tribunal já fechou ao público. A mesa já tem os montes do dia seguinte e podia despachá-los para no dia seguinte estar mais calma. Mas olha pela janela e o Sol convida a sair. Os primeiros raios de calor começam a sentir-se e resolve ir até à beira-mar. Talvez tomar um sumo enquanto vê as ondas do mar a abraçarem a areia.
Estaciona o carro e pára junto de um pequeno muro que lhe dá pelos joelhos e que separa o cimento da areia. O sol faz-lhe brilhar o cabelo enquanto protege os olhos com a máscara. Não consegue evitar de pensar enquanto vê a praia deserta. Resolve pular o muro e descalçando-se começa a caminhar pela areia com os sapatos na mão direita. E vem-lhe à memória uma história batida pelo seu coração.
Lisboa. Centro de Estudos Judiciários. Belle e Pedro namoram há um ano e com o aproximar do fim da fase teórica a ideia de casamento assalta-lhe por diversas vezes a mente. Vivem juntos num andar na Graça e pode garantir que foi o melhor ano da sua vida. Ela e o Pedro ajudaram-se muito nos estudos e a nível sentimental e físico tudo correu bem. Os docentes não souberam dessa relação com algo de proibido para mentes conservadoras (ainda se recorda da má cara da sua ex-futura sogra na estação de comboios).
Adorou Lisboa. Tudo era grande: os monumentos, as avenidas, os centros comerciais. Nem reparou na impessoalidade da urbe (o Pedro estava sempre junto de si).
Quando as notas saíram não sofreu muito. Não só por saber que tinham boas notas mas por que só faltavam quinze dias para ter de ir embora. E o Pedro ainda não lhe tinha dito se ia concorrer para o mesmo tribunal que ela ou se ia ficar por Lisboa. E foi na praia, num pôr-de-sol magnífico, com algumas nuvens que se lembra de ver nos postais religiosos (e no Forrest Gump) como referência a Deus que começou a perder a fé na sua relação. O Pedro desfez-se em beijos e carícias e promessas de que nunca se iriam separar mas que queria fazer carreira na capital e que até um dos docentes lhe tinha indicado uma possível formadora.
Belle não chorou. A vida que Pedro lhe dava tinha sido do melhor. Mas não queria viver na capital. Os seus pais, a irmã mais nova, a avó eram laços muito fortes para começar a viver em Lisboa onde não conhecia ninguém. Quando assentasse na carreira aí sim, poderia pensar em mudar; agora não.
Cobarde. Enquanto veste o blusão de cabedal e puxa os óculos para a cabeça, pensa que errou. Nunca devia ter deixado o Pedro só em Lisboa. Nunca me traiu. Só a vida lhe pregou a rasteira final. Ela chegava no comboio da 22.30 horas. Pedro saiu atrasado do apartamento em Sintra. Tinha caído uma chuva miudinha. Numa curva não conseguiu controlar o A3 e embate num paredão do outro lado da estrada. O air bag sai numa golfada de gás mas a pancada foi demasiado forte.
Belle enrola os braços pelo corpo e caminha em direcção ao carro. Passa por um quiosque. Nos jornais os títulos a negro realçam a morte do miúdo na Serra. Mais um. Espero nunca apanhar um processo destes. Não sei se tenho estofo para encarar um pedófilo.
O inspector aguarda do lado de fora da sala. O médico legista retira a bata.
Então, que me diz, doutor?

Sei que as minhas histórias são obsessivamente mórbidas. Mas em vez de relatar a minha insípida história triste, relato a dos outros. Acreditem, é uma forma de terapia. Os outros têm problemas mais graves que os meus. Mas um dia destes vou fazer duas coisas: escrever a sério (como já fiz em tempos) sobre a justiça e a brincar. Um abraço especial para Magnólia a quem só espero não desiludir muitas vezes.

07 novembro 2005

Paulo





Vamos, força! Só mais um pouco, só mais um pouco!
O resto do corpo de Paulo sai para a vida. Todo ensanguentado espera pela pancada que lhe dá voz. Colocam-no num berço arrumado entre outros em fileiras. Todos iguais. Duas horas depois já estava ao peito da mãe. Tão giro, diz a enfermeira. O pai já viu o bebé? A mãe não responde. Nessa mesma noite tira a roupa branca do hospital e vestindo a camisola que trazia quando aí entrou foge.
Dão pela sua falta na próxima toma. A assistente social pega-lhe ao colo. Paulo vai mudar de casa. Na televisão da sala de espera Bob Geldof apela à luta contra a fome em África.
Paulo joga futebol com os outros miúdos da instituição. Nunca tem visitas. Nunca se descobriu o paradeiro da mãe. É feliz, no seu mundo. Gosta das vigilantes e dos colegas e até a Directora gosta dele. Moreno, olhos escuros, pretos. Magro mas forte. Nunca esteve doente nem quando foram todos até à serra e apanharam uma carga de chuva que arruinou o piquenique e constipou a instituição.
Paulo, tens uma visita. É uma pessoa muito simpática que te quer conhecer. Queres vir?
Já tinha visto pessoas que iam à instituição e que depois acabavam por levar os colegas com elas. Às vezes para sempre (adeus Jójó que ia sorridente com os seus novos pais).
Paulo encontra-se de frente para o senhor.
Olá! És o Paulo, não és? Queres vir ali comer um bolo comigo e conversar um pouco? Gostava de te conhecer melhor.
A Directora, ligeiramente afastada para um canto do hall, observa a reacção do Paulo.
Não és casado?
Não, já fui mas a minha mulher teve uma doença e…morreu.
Está bem. Tenho fome.
Mais bolos e sumos se repetiram até que começaram a fazer algumas viagens. Foram ao futebol, ao cinema e ao circo. O Sr. Rogério era muito simpático. Paulo começou a levar para a instituição alguns brinquedos novos. Uma bola, um Action Man e até um Nintendo. Começou a ficar isolado. Interessava-lhe mais a vida lá de fora, com mais viagens e boa comida.
Não consegue lembrar-se, enquanto as luzes azuis da ambulância o cegam, como tudo começou. Uma carícia na testa. Um beijo à despedida. Um dar de mãos mais prolongado na entrada do cinema. Um toque de pernas no circo. Quando se apercebeu cada vez tinha mais prendas. Na instituição começou a ser evitado. Os comentários sucediam-se mas também pouco lhe importava. Praticamente só lá ia dormir. Tinha melhores roupas que todos eles e sabia que aquele não era o seu lugar. Um dia, ia ter idade para sair dali para sempre e ir viver no estrangeiro como o Rogério lhe prometeu.
No último dia, viajaram de carro. Paulo via as pessoas a passear na cidade através do vidro fumado. No semáforo a luz vermelha pára a viagem. E vê. Vê um miúdo a olhar para dentro de si mas em que a ligeira camada de volfrâmio no vidro impede que se reflictam. E vê Jójó a dar a mão ao pai e à mãe. Apetece-lhe abrir o vidro mas quando o ia fazer a luz verde afasta-o do amigo.
Onde vamos? Não é este o caminho para casa.
Foram para fora da cidade. Serpentearam pelos caminhos da serra e chegaram à casa. Entraram e o cheiro a sexo invadia todas as divisões. Subiram as escadas e percorreram um longo corredor. Por cada porta que passava Paulo ouvia os gemidos a que estava tão habituado. Era o dia da primeira festa de Paulo. Entraram num quarto.
De joelhos. Rogério senta-se num cadeirão e desaperta o colarinho. Agarra calmamente num copo com whisky a seu lado e bebe um longo trago. Tem sempre a garganta seca nestes momentos. Começa a tirar o casaco enquanto vê Paulo a despir-se. O telemóvel toca.
Não pode ser! Vou já!
Veste rapidamente o casaco e desaparece a correr pelo corredor. Paulo, assustado, começa a vestir-se. De rompante, entram dois homens no quarto que o agarram e levam para um outro carro que arranca a toda a velocidade.
Não conhece este caminho. O carro pára.
Desculpa rapaz mas tem de ser.
O inspector observa o corpo do rapaz que entra na ambulância. Não mais de quinze anos. E bateram-lhe bem. Talvez um taco que lhe rachou o crânio. Observa-lhe a face enquanto os paramédicos lhe abrem as pálpebras. Ainda está vivo.
Paulo está deitado de costas na pedra. Uma luz forte ilumina-lhe os olhos abertos. Corpo gelado sem frio. O médico legista encosta a faca no cimo do peito.

02 novembro 2005








A greve foi um sucesso. É certo que a população ainda não percebeu o motivo da nossa luta mas a seu tempo irá dar-nos razão. O Governo não pode continuar….
Simão desliga o auto rádio. Conduz em direcção ao Tribunal da Relação onde vai ter a última sessão (a outra foi adiada devido à greve).
Todos sentados à volta da mesa brilhante e enorme. A cadeira nunca lhe foi confortável (demasiado baixa) mas apesar de tudo sentia-se bem. Os colegas. Tem de admitir que podia ter sido bem pior. Todos trabalhavam e raras vezes assinou acórdãos que lhe suscitassem muitas dúvidas mas a verdade é que mesmo nessas alturas não quis levantar ondas.
Hoje trouxe cinco projectos de acórdãos tendo todos sido aprovados sem qualquer voto de vencido. Será comiseração? Lembra-se daquela série em que soldados ingleses tinham de desactivar bombas não detonadas e em que no último episódio, o capitão, já com três pernas, quis desactivar a última. Caiu por cima da bomba, deixou cair a ferramenta em cima dela e por fim, quando chega ao detonador, repara que já estava desactivada com um papel a dizer: Best Wishes from the Fuhrer. Talvez não.
Não se arrepende. Ainda se lembra, no tempo da ditadura, de ter conta aberta na mercearia e de ter a simpatia do dono em só pagar no fim do mês. De raramente comprar novos casacos pois os dois filhos bem precisavam mais. Das horas e horas que passou a escrever à mão despachos e sentenças. Tudo isso passava com a certeza que na maioria das vezes a sua decisão era respeitada.
Na primeira manhã de liberdade perdeu-se a caminho do tribunal. Perdeu-se na confusão de cheiro de suor e flores, de amor e ódio. Pensou que nada mais seria como dantes. E não foi. Veio o F. M. I., a C. E. E., a U. E., Maastricht, Nice, o Euro. Governos subiram e caíram, o povo manifestou-se uma, duas, cem vezes. As leis mudaram e mudaram e mudaram enquanto os anos passavam, também por Simão, sem que se apercebesse. Acabou-se com a Corregedoria, criaram-se tribunais de círculo, acabaram-se com estes e criaram-se varas e juízes de círculo. As alçadas aumentaram., o processo-crime passou a exigir a presença do arguido no julgamento, depois só à terceira é que não era preciso, depois à segunda se fosse indispensável mas é preciso notificá-lo sempre pessoalmente da sentença.
Melhor? Pior? Nas palavras de cidadãos, políticos: muito pior. Mas antes não se falava de justiça pois quem podia aceder a ela? Hoje todos têm direitos. E quantos mais direitos, mais processos.
Confesso: se fosse juiz de primeira instância talvez não conseguisse. Saco da caneta e assino o Acórdão. Foi o último. A aposentação foi deferida. Não estou para ouvir dizer que os juízes não trabalham ou que tenho direito a viajar de graça de casa para o trabalho. Os recursos são infindáveis, qualquer despacho é recorrível. Os juízes perdem a cabeça e trocam palavras com advogados em processos ou em praça pública. Já não sou preciso nem aqui pertenço. Não me queixo de não ter dado atenção aos filhos como tantos colegas se choram pelos cantos de o terem feito mas vão para casa o mais tarde possível. Foi a minha última greve. Na primeira lutei contra o miserabilismo a que éramos votados. Nesta lutei contra todos: contra a demagogia e a mentira, deles e nossa. Deles por que me disseram, na cara, que só queria férias; nossa porque nos acomodámos numa cama com um colchão suave mas com molas frágeis. Por isso vou. Que diabo, I´m old but still like a good laugh at the locker room.
Abraços. Pá, havemos de combinar do teu jantar de despedida. Claro, claro. Onde todos dizem bem de nós, mesmo os que mal conhecemos ou não gostam de nós. Claro. Onde todos vão e só alguns estão. Claro.
Mete as chaves na ignição. Hoje, Simão vai jantar fora. Jantar de ricos. Jantar com mulher, filhos, noras e neto. O mais rico de todos. Em família.
Próximo post: mais Amélias mas também Belle na praia.





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