Entro confiante na repartição projectando o fim da minha viagem.
Um balcão com divisórias de vidro, iluminadas por um foco colocado no tecto, acolhe funcionários com apêndices auriculares.
Coloco-me numa das filas que indica Renovação de Documentação. Apenas uma pessoa me antecede. Rapidamente a encaminham para outro departamento.
Boa tarde. Recebi a vossa carta para renovar os papéis.
Com certeza, senhor. Um momento.
A funcionária tecla num computador e fixa o olhar ao meu lado. Está a ouvir instruções no auricular. Abana levemente a cabeça.
Por favor, siga-me.
Conduz-me por um corredor claro e estreito até uma porta.
Entre. Se quiser sente-se nessa cadeira.
Aceito a sugestão.
Escuro. Tenho dificuldade em adaptar-me à ausência de luz sentindo-me praticamente cego. Quando começo a pressentir a presença de um vulto numa esquina da sala, acende-se uma luz. Pequena mas forte que me obriga a fechar os olhos. Com a mão à frente da cara procuro descobrir quem está na sala. Avança na minha direcção. Pára e estende-me a mão.
Viva. Espero que te sintas confortável.
Cumprimento-o e, apesar da imediata familiaridade, pergunto.
Quem és?
Puxa de uma cadeira e senta-se ao meu lado.
Tu. Pelo menos em parte.
Olha, está bem, isto é muito bonito mas encontrei crianças que esperavam mas não estavam à espera, comboios que surgem de nevoeiros misteriosos, a mulher que amei e já não existe e agora, por causa de uns simples papéis, dou de caras com um tipo que diz que sou eu, francamente, vou-me embora para a minha tenda e de lá não volto a sair.
O suposto outro eu sorri.
Tens toda a razão, moicano. Eu explico. Sou o teu autor. Fui eu que te criei e que te chamei até aqui.
Foste tu que…, e me chamaste… . Estendo os braços ao longo do tronco. Não percebo. Tu és o meu Criador?
Sim, mas sem C maiúsculo. Sou apenas alguém que resolveu criar um blogue e te deu uma identidade.
Reflicto uns segundos.
Espera aí! Se és o meu criador, como é que estou aqui a falar contigo, ah? Eu digo o que me apetece e tu não estás a criar-me.
O outro eu aponta para o fundo da sala.
Vês, ali, naquele computador, está escrito tudo o que aqui se está a passar. Acabei precisamente quando te sentaste.
Quer dizer que escreves às escuras?
O autor ri-se.
Não, a luz sempre esteve lá só que não tinha chegado a altura de a veres. Escuta, diz ele pondo a mão no meu braço. Chamei-te para dizer que a tua viagem chegou ao fim. O moicano vai (hesita), digamos, vai sair de cena. Esta é a tua última viagem caro moicano.
Porquê?
Ora, tudo o que começa acaba, o autor está cansado, acabou o prazo de validade, perdeu-se o rumo, sei lá, tudo isto e nada daquilo. Sinto que te tenho de dar felicidade. Tenho-te causado muito sofrimento, não consigo evitar escrever sobre a morte, sobre tristeza e isso deixa-me amargurado. Mereces melhor, mereces ser feliz, decidires o trilho que queres seguir.
Tu escreveste isto?
O autor abana a cabeça enquanto passa a mão pelo cabelo ralo.
Sim, sim. Tudo está escrito. A tua história está escrita até ao final.
Se bem percebo, vou morrer.
Lá está, vês, outra vez a morte. Estás a ficar obcecado, daqui a pouco tu és como eu e não posso permitir que isso aconteça.
Levanta-se. Puxa-me da cadeira, agarra-me os braços e fita-me nos olhos.
O teu autor é um grão de areia insignificante ao pé daquilo que tu representas para mim. Mereces viver, ouviste, viver e não morrer.
Larga-me.
Bem, o caminho com árvores e uma laje ao fundo está lá mas é tudo meramente simbólico.
Percebo. Sim, percebo. E odeio-te. Bastava escreveres que nada mais ias publicar e o assunto estava arrumado. Mas até te perdoava se não fosse Madalena. Porque a encostaste de novo ao meu peito?
O autor volta-se e carrega num interruptor. As paredes desaparecem e dão lugar a uma rua da cidade. Está frio e choveu há pouco.
Chegou a hora moicano. Farás sempre parte da minha vida. Foi uma honra escrever-te.
Estende a mão. Despedimo-nos sem palavras. Ele desaparece numa esquina. Fico petrificado na estrada enquanto todos me ignoram. Já moicano não sou.
Madalena enfia os seus braços no meu braço esquerdo. Começamos a caminhar. Diz-me que a vida continua e quando dou conta rimos juntos.
«rimos juntos». Está terminado. A luz apaga-se suavemente nos meus olhos.
Sim. Desta vez é final. O primeiro moicano acaba aqui. Poderá haver outros pioneiros mas este deixava-me muito cansado. Desde que abandonei a exposição de ideias jurídicas e me dediquei a escrever estes pedaços de histórias, sentia que cada uma podia ser a última. E agora, que mudei de tribunal, o tempo praticamente é nulo. Em termos de tempo, há prioridades e o trabalho (que não o merece, de forma alguma, neste país em que a maioria dos processos clama não por justiça mas por simples vitória) agora sobrepõe-se.
Queria escrever para os contos jurídicos mas não consegui. E mesmo nesta viagem III fico com a sensação de Matrix em que o último é o mais complexo e o menos conseguido.
Obrigado Cleópatra, a quem sempre tentei agradar em especial por que sabia que gostava do que eu escrevia. E a todos os outros (Redonda, Morgana, Dizpositivo – desinteressada amabilidade em informar que eu tinha postado -, todos os outros, obrigado e até à próxima).